tag:blogger.com,1999:blog-71274543403338510852024-03-15T22:10:09.424-03:00na cabeceiraliteratura & diaricesMia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.comBlogger48125tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-55511453250894237402023-11-13T03:39:00.003-03:002023-11-19T13:02:10.763-03:00Publiquei um livro <p style="text-align: justify;">Escrevo neste blog desde 2010. No ano anterior, já havia tido um outro blog, mas perdi a senha dele e ficou por isso mesmo. Este blog me acompanha há 13 anos - e já teve muitos posts arquivados, pois quem quer a sua adolescência exposta na internet, não é mesmo? Mas são 13 anos escrevendo e sendo lida de alguma forma. E nesses 13 anos, eu nunca tive coragem de me chamar de escritora. </p><p style="text-align: justify;">Até agora. </p><p style="text-align: justify;">Quando a gente publica um livro, a gente é escritora? O que torna alguém numa escritora? É escrever? Obviamente. Mas basta? Porque escrever sempre escrevi, mas agora parece que a coisa é <i>séria</i>. Não que eu queira colocar um peso em cima disso e virar uma dessas pessoas pedantes & insuportáveis que se acham geniais porque algum editor achou seu livro bom o suficiente para publicá-lo. Sou só eu - uma jovem camponesa de bom coração que vai todos os dias ao bosque recolher lenha. Eu e os bichos que me fazem companhia, cujos sons ouço enquanto escrevo. Mas agora eu tenho um livro - que eu escrevi! - com ISBN e tudo. É doido pensar nisso. É doido pensar como este tem sido um ano de muitas coisas boas - e um ano em que tenho conseguido lidar. Ponto. Conseguido lidar ponto. Nem sempre da forma como eu gostaria, mas da melhor forma possível. </p><p style="text-align: justify;">Bem, escrevi um livro. Sou uma pessoa que escreve. Sou uma escritora ~~enfia a cabeça num buraco tal qual as emas. </p><p style="text-align: justify;">O livro se chama <i><a href="https://www.editoraminimalismos.com/product-page/or%C3%A1culo-de-mia-sodr%C3%A9" target="_blank">Oráculo</a></i>. Reza a lenda que os oráculos existem desde que existe a civilização - o ser humano, afinal de contas, sempre quis saber do seu futuro, sempre quis entender melhor as coisas, sempre teve fascinação pelo mistério. O oráculo do meu <i>Oráculo</i> é aquele da Grécia antiga - a oráculo de Delfos, sacerdotisa de Apolo, pitonisa. Meu flerte (ou completa obsessão, como preferir) pela Grécia antiga começou quando eu ainda era criança, e não sei precisar exatamente quando. Sei que eu amava <i>Hércules</i> - tanto a animação quanto o desenho mesmo. Sei que um dia a minha mãe me pegou cantando uma espécie de hino a Apolo, isso quando eu tinha uns 5 ou 6 anos - lembro disso porque ela ficou preocupada e, além de ter memória do evento, volta e meia ela conta como eu era uma criança esquisita. Ao entrar na escola, fui pra biblioteca e peguei vários livrinhos já no primeiro dia de aula - e minha paixão pela mitologia grega só fez crescer. Não é à toa, portanto, que o meu livro tenha Apolo na capa e o título de sua alta sacerdotisa. É o destino. </p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8spTMamMQYw4GuCKmVeg74fJsXOqN7srx1zj_K8kYOIvZBmXOAUG7Q_yLQycXE4N0cKY5DGnrG7JZgSjJmUrhUz4wJH3HdT7tcH7Zes414eT52TT939JsH6ohZQtcJ3qVOfHkmJrUXqjZQbLl0Gr2DeXrgjXRIVJMLcz6XK0HIOuxArD5RC2aw40Jk3c/s7259/image-from-rawpixel-id-514908-jpeg.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="5119" data-original-width="7259" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8spTMamMQYw4GuCKmVeg74fJsXOqN7srx1zj_K8kYOIvZBmXOAUG7Q_yLQycXE4N0cKY5DGnrG7JZgSjJmUrhUz4wJH3HdT7tcH7Zes414eT52TT939JsH6ohZQtcJ3qVOfHkmJrUXqjZQbLl0Gr2DeXrgjXRIVJMLcz6XK0HIOuxArD5RC2aw40Jk3c/s16000/image-from-rawpixel-id-514908-jpeg.jpg" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>Apolo nas nuvens</i> (1688), por Johan Teyler</td></tr></tbody></table><p style="text-align: justify;">O livro é de poesia. Acho que a primeira coisa que escrevi - fora o meu nome e as palavras básicas que toda criança aprende, claro - foi poesia. Não era boa, mas era genuína. Eu amo um bom romance, mas poesia é o meu gênero favorito, sempre foi. Na infância era uma criança romântica dada a passar horas lendo os poetas cujos livros encontrava na biblioteca da escola. Na adolescência fugia da educação física para ir ao cemitério, que ficava ao lado da escola, e ler Álvares de Azevedo e sua turma sentada em alguma lápide. A adolescente gótica por excelência, como se pode perceber. Escrevi muitos poemas naquela época, mas não fiz nada com eles, só os deixei guardadinhos e nem cogitava mostrá-los a alguém. Hoje, alguns estão no meu livro. É esquisito pensar nisso. Consigo perceber uma clara linha entre a Mia que fui e a Mia que sou - neste sentido, os meus poemas são uma espécie de espelho, embora não sejam necessariamente confessionais. Foi Henry James quem disse que <i>"O autor está em cada linha da obra da qual ele tentou se ausentar"</i>. Só podemos ser quem somos - e aquilo que escrevemos, seja de forma explícita ou não, está repleto do que nos importa. Posso não me colocar no texto, mas apenas o fato de ter escolhido falar sobre uma coisa ao invés de outra já indica quais são os meus interesses, já mostra com o que me importo. É impossível escapar de si mesmo. </p><p style="text-align: justify;">Os poemas não são necessariamente sobre a Grécia antiga - embora alguns façam referência à Antiguidade Clássica. Mas também falam do Gótico, do Romantismo, do Tempo, da Morte, do Amor. De tudo o que me interessa, basicamente. </p><p style="text-align: justify;">No dia 02/12, farei o lançamento dele. Será em Porto Alegre. Caso alguém queira comparecer, sinta-se convidado. Quis deixar o lançamento mais aconchegante - até porque tenho pavor de aparecer em público, de ser vista, vocês estão aqui há tempo suficiente para saberem como sou introvertida -, então escolhi como local um pub muito bacana, com uma decoração linda, que realiza alguns eventos literários: o Mondo Cane. Vai ser às 16h. Convidei uma amiga, que é Doutora em Estudos Literários, para fazer um bate-papo sobre o livro e sobre literatura, mulheres escrevendo e poesia. Depois, o local costuma realizar, à noite, um karaokê. Não canto em público há muitos anos, mas acho que estarei de bom humor o suficiente para tentar. Vai ser divertido. :) </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9UmrOnemq78eXRTn7xWKSHIKiZV3VoNJydrwu2GDJF8vfvS4deJTNz5SZ3cz1n4ykJ5Kr97SzFdqXs0XON55cBv14ePtKcEU_bip0nem-w4bxwixfBK3PRgM9XFWry6ROOv5p9C2bwmsq9GnhtsZ6htbPogLupRZYG4ipVmMRwl-LSZXnI-yqUQsM8rA/s1350/lan%C3%A7amento%20(1).png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1350" data-original-width="1080" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9UmrOnemq78eXRTn7xWKSHIKiZV3VoNJydrwu2GDJF8vfvS4deJTNz5SZ3cz1n4ykJ5Kr97SzFdqXs0XON55cBv14ePtKcEU_bip0nem-w4bxwixfBK3PRgM9XFWry6ROOv5p9C2bwmsq9GnhtsZ6htbPogLupRZYG4ipVmMRwl-LSZXnI-yqUQsM8rA/s16000/lan%C3%A7amento%20(1).png" /></a></div><p style="text-align: justify;">O livro pode ser adquirido diretamente no site da editora, caso alguém se interesse. Se quiser, <a href="https://www.editoraminimalismos.com/product-page/or%C3%A1culo-de-mia-sodr%C3%A9" target="_blank">clique aqui para ser redirecionado para a página do livro</a>. </p><p style="text-align: justify;">Espero que gostem. </p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-38345071850112159492023-07-13T04:15:00.004-03:002023-07-13T04:17:44.881-03:00A morte do poeta e o despertar do sonho <div style="text-align: justify;">Às vezes me pergunto sobre a substância dos sonhos — o que faz um sonho? Quando tinha 10 anos, li uma matéria da Superinteressante que dizia que os sonhos eram uma complicada conexão de muitas coisas no cérebro a nos levar a uma viagem dentro do próprio subconsciente, terra da fantasia e de pesadelos terríveis. Eu acredito nisso, é claro, mas também acredito que exista algo além disso — nem tudo são reflexos do nosso subconsciente, nem tudo são coisas censuradas pelo superego, embora muito seja. Lembro do que John Keats falou durante um jantar particularmente famoso, comentando que Newton havia tirado toda a beleza poética do arco-íris ao explicá-lo através do prisma de cores da matemática. Claro, era uma provocação divertida — mas uma brincadeira vinda do último dos poetas Românticos, que via o mundo sob uma ótica de beleza mitológica, de encantamento, coisa que, aos poucos, desaparecia conforme a Revolução Industrial se aproximava. É maravilhoso que tenhamos explicações científicas para tantas coisas, mas também é lamentável que tenhamos, enquanto sociedade, perdido o encantamento pela magia da vida.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Anteontem, acordei de um sonho no qual beijava o rosto de alguém e dizia que tudo ficaria bem. Era um resquício de uma das vidas que escolhi não ter — uma vida que certamente não seria desagradável. E no mundo dos sonhos as possibilidades são infinitas dentro daquilo que somos. Foi Shakespeare quem escreveu, em <i>A tempestade</i>, que:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><blockquote>“Nós somos esta matéria de que se fabricam os sonhos, e nossas vidas pequenas têm por acabamento o sono.”</blockquote></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se a morte é uma porta para outras vidas, o sono é um flerte com todas aquelas que poderíamos viver — todas as possibilidades que escolhemos ignorar enquanto acordados. Em <i>A biblioteca da meia-noite</i> a protagonista adentra diversas vidas possíveis enquanto está entre a vida e a morte. Num estado de inconsciência, mas ainda viva, ela não sabe se sonha ou se de fato viaja para dentro de todas as possibilidades que deixou passar, mas sabe que, independentemente disso, o resultado é catártico — e o que importa, afinal de contas, se trata-se de universos paralelos ou de outras vidas? O que importa é o que sentimos e como isso nos afeta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em <i>Manfred</i>, Lord Byron escreve:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"></div><blockquote><div style="text-align: center;">“A Morte, como é chamada, é algo que faz os homens lamentarem,</div><div style="text-align: center;">Ainda assim, um terço da vida é passado dormindo.”</div></blockquote><div style="text-align: center;"></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nós tememos a morte, mas a experimentamos diariamente a conta-gotas. Talvez a morte seja apenas um estado onírico entre uma coisa e outra, um momento de descanso catártico, no qual todas as nossas possibilidades nos são apresentadas e sabemos que poderemos, a partir dali, fazer diferente, fazer melhor. Talvez acessemos conhecimentos em estado de quase vigília que não conseguimos perceber durante o ruído cotidiano do dia. Nós tememos algo intrínseco a nós — do sono e da morte não se pode escapar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sábado, foi o aniversário de 201 anos da morte de Percy Shelley. A vida de Percy era cercada de presságios, visões e sonhos, muitos que se concretizaram e tantos outros que ele transformou em poesia. Percy era cético — famoso por sua expulsão da faculdade após ter escrito um manifesto em favor do ateísmo —, mas seu ceticismo estava mais ligado a questões do cristianismo do que a algo como negar a existência de qualquer coisa espiritual. Isso porque ele mesmo tinha experiências que não conseguia explicar de outra forma. Foi o que aconteceu a respeito de sua morte, por exemplo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhM9vunu0lR7uluqjdB_r9-BdgCXBBgM5HUWsHKx4UgPG0DhuTFfFNnIMVXOyCRGRFevVqo23JEdytZnsusnUpjwBFA59EWfif-Yk3U2qIfl2vOMvBhUJFlojJ5IGiuqRhM5wG5lR7LFUl6yaRgWzHCJ2HmAmCsZ8ji9eQW_vr_bf6m4kS77Osm9byCLOw/s1280/The_Funeral_of_Shelley.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="773" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhM9vunu0lR7uluqjdB_r9-BdgCXBBgM5HUWsHKx4UgPG0DhuTFfFNnIMVXOyCRGRFevVqo23JEdytZnsusnUpjwBFA59EWfif-Yk3U2qIfl2vOMvBhUJFlojJ5IGiuqRhM5wG5lR7LFUl6yaRgWzHCJ2HmAmCsZ8ji9eQW_vr_bf6m4kS77Osm9byCLOw/s16000/The_Funeral_of_Shelley.jpg" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>The funeral of Shelley</i>, por Louis Édouard Fournier (1889)</td></tr></tbody></table><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cerca de 1 ano antes, John Keats havia morrido. Percy sabia que Keats estava doente, com tuberculose, mas não sabia da extensão da doença — havia, inclusive, convidado o amigo para ficar em sua casa, em Pisa, quando soube que Keats estava indo para a Itália, para Roma, numa tentativa de escapar do gelado inverno inglês. Keats acabou não aceitando o convite por alguns motivos, dentre eles o fato de que sabia que estava morrendo e de nada adiantaria tal coisa. Ao saber da morte de Keats alguns meses após o ocorrido, Percy ficou profundamente triste e saiu correndo imediatamente para escrever um poema em homenagem a ele — foi assim que nasceu <i>Adonais</i>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><blockquote>“Paz, paz! Ele não está morto, não está dormindo — apenas despertou do sonho da vida.”</blockquote></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Escrito como uma elegia, <i>Adonais</i> faz diversas referências aos clássicos gregos — combinando com o que Percy já havia dito sobre Keats quando, certa vez, criticaram o poeta por escrever tantos poemas sobre os mitos gregos e seus deuses sendo que ele não havia tido a educação formal com aulas de grego, ao que Percy respondeu <i>“Ele era grego”</i>, referindo-se a uma outra vida de Keats —, enchendo de beleza a morte do maior poeta Romântico inglês, e o mais jovem deles a morrer. O poema, desde seu título, já faz referência ao deus grego da juventude, fertilidade e beleza, Adônis. Para Percy, Keats lembrava Adônis por ser, agora, eternamente jovem, eternamente bonito, cercado da qualidade do eterno que existe na morte. Embora ateu, Percy fala do renascimento do amigo — o renascimento na beleza que compõe o universo, que também era assunto central na poesia de Keats.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na época da escrita do poema, Percy já estava lidando com visões estranhas e sinistras acerca de seu futuro. E, como disse Hilda Hilst, <i>“O poeta é aquele que é meio profeta”</i>. O próprio Percy, em seu ensaio em defesa da poesia, havia escrito acerca da <i>“profecia como um atributo da poesia. Um poeta é parte do eterno, do infinito, e do todo; para ele, o tempo e o lugar e o número não existem”</i>. Não é de se espantar, portanto, que sua elegia à morte de Keats, <i>Adonais</i>, tenha presságios de sua própria morte.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"></div><blockquote><div style="text-align: center;">“Espera um pouco… Ah! fala-me outra vez;</div><div style="text-align: center;">beija-me, apenas pelo tempo que pode durar um beijo;</div><div style="text-align: center;">e no meu peito vazio, neste rosto febril</div><div style="text-align: center;">que palavra, que beijo podem sobreviver</div><div style="text-align: center;">alimentados pelas mais dolorosas recordações,</div><div style="text-align: center;">agora que morreste, como se fossem uma parte</div><div style="text-align: center;">de ti, meu Adonais! Daria tudo o que sou</div><div style="text-align: center;">para me transformar no que tu és agora!</div><div style="text-align: center;">Mas estou presa ao Tempo, e não posso partir!”</div></blockquote><div style="text-align: center;"></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Percy morreu 1 ano após ter escrito sua elegia a Keats — seu corpo, afogado durante uma tempestade no pequeno barco que navegava com um amigo. Levado pelas águas e já irreconhecível, só pôde ser identificado pelo que carregava consigo, o último livro de poesia de <i>Keats, Lamia, Isabella, the Eve of St Agnes and Other Poems</i>. Em <i>Adonais</i>, o tema da morte na água, num barco, já era falado. Percy, na estrofe final de seu poema, conecta sua alma a um barco que é levado para longe:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"></div><blockquote><div style="text-align: center;">“O poderoso alento que nestes versos invocara,</div><div style="text-align: center;">sobre mim desce; o barco da minha alma é levado</div><div style="text-align: center;">para longe da margem, das tímidas multidões</div><div style="text-align: center;">cujos barcos nunca foram entregues à tempestade;</div><div style="text-align: center;">fendidas estão a própria terra e a esfera dos céus!</div><div style="text-align: center;">Sou arrebatado pelas trevas e pelo assombro</div><div style="text-align: center;">enquanto a alma de Adonais, a arder através do último véu</div><div style="text-align: center;">do Firmamento, como se fosse uma estrela,</div><div style="text-align: center;">vem guiar-nos, e brilha onde estão os Imortais.”</div></blockquote><div style="text-align: center;"></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Há outros presságios de sua própria morte no poema, como quando Percy fala em ir para Roma, <i>“onde está o túmulo”</i>. Mary Shelley, esposa de Percy, depois de sua morte afirmou em carta que Adonais lhe parecia, agora, muito mais um presságio da morte do marido do que uma elegia a Keats. Depois de recuperado o corpo, quando fizeram o funeral e cremaram os restos mortais de Percy, seu coração permaneceu intacto — Mary, então, o guardou em sua gaveta durante o resto de sua vida, enrolado numa página dos versos de <i>Adonais</i>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Duas semanas antes de morrer, Percy havia acordado a casa inteira no meio da noite por algo que ele não sabia se se tratava de pesadelo ou visão — o fato é que ele havia visto claramente Edward Williams (o homem que morreria com ele duas semanas depois) e Jane em seu quarto, cobertos de sangue, gritando que o mar estava invadindo a casa e que a casa estava desmoronando. Anteriormente, ele também havia visto uma criança emergir do mar, fazendo um sinal estranho para ele. Além disso, Percy havia tido várias visões de seu <i>doppelgänger</i>, seu duplo, o que era e sempre foi considerado um presságio de morte.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda ligado ao mundo dos sonhos e das transformações — transformações como metamorfoses, o conceito grego de uma coisa que transforma-se em outra, nunca morrendo, sempre cumprindo seu destino —, em sua sepultura, onde foram depositadas as suas cinzas, encontra-se outra passagem de <i>A tempestade</i>:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"></div><blockquote><div style="text-align: center;">“Nothing of him that doth fade,</div><div style="text-align: center;">But doth suffer a sea-change</div><div style="text-align: center;">Into something rich and strange”</div><div style="text-align: center;"></div></blockquote><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em tradução de Beatriz Viégas-Faria para a edição da L&PM, o trecho ficou assim: </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"></div><blockquote><div style="text-align: center;">“E nada estraga, e nem se perde:</div><div style="text-align: center;">Tudo nele se transforma, no mar,</div><div style="text-align: center;">Em algo mui rico e singular.”</div></blockquote><div style="text-align: center;"></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Certamente, assim como Keats, Percy não morreu — apenas acordou do sonho da vida para viver outra realidade em metamorfose.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><hr />Parte do texto originalmente publicado na <a href="https://queridoclassico.substack.com/p/14-a-morte-do-poeta-e-o-despertar" target="_blank">newsletter</a>. Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-40528558151904918672023-01-02T12:54:00.017-03:002023-01-02T13:16:28.571-03:00Retrospectiva literária 2022 <p style="text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjB7YE0ZnH0TUpWIBveGEfR4pHuViL0Jh0RCUJdY-RJjaWtgJr8ml5lpZzkVTxSvwoPFTRWrgj5t7IZ1_8-XJiH2yD6IXk06mtpinyTydYqQOs1SRYh7ZS2ONEF6E2RM1IgmxCxJXNQaINKyA-3VIc-839o4qcPwTbR1LkfjxIS8ctf6htdjsp_SQ-y/s1800/melhores-livros-2022-mia-sodr%C3%A9.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1000" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjB7YE0ZnH0TUpWIBveGEfR4pHuViL0Jh0RCUJdY-RJjaWtgJr8ml5lpZzkVTxSvwoPFTRWrgj5t7IZ1_8-XJiH2yD6IXk06mtpinyTydYqQOs1SRYh7ZS2ONEF6E2RM1IgmxCxJXNQaINKyA-3VIc-839o4qcPwTbR1LkfjxIS8ctf6htdjsp_SQ-y/s16000/melhores-livros-2022-mia-sodr%C3%A9.png" /></a><br /><br />Assim como 2022 foi um ano em que vivi para dentro, também foi um ano em que deixei muita coisa pela metade. Nem sempre havia um porquê exato - às vezes, estava lendo ou assistindo a um filme quando me chamavam, eu ia ver o que era, deixava a obra de lado e nunca mais. Também aconteceu de eu sentir que não era a hora para aquela leitura e deixá-la guardadinha, esperando pelo momento certo. </p><p style="text-align: justify;">Mas 2022 foi um ano estranho em todos os aspectos. Eu estava passando por muita coisa - e isso se refletiu nas minhas leituras. Passei quatro meses inteirinhos sem ler um livro sequer. De abril a agosto, tudo o que li foi do trabalho - as leituras pessoais, de que gosto tanto, simplesmente não foram feitas. Embora eu faça uma meta de ler 50 livros por ano, isso não é nada extremamente fixo: leio o que quero e o que gosto e pronto. Se forem 50, que bom; caso contrário, tudo bem também. Mas justamente por causa de todos esses meses sem ler nenhum livro, achei que não fosse concluir o ano com 50 livros lidos - contudo, li exatamente essa quantidade. </p><p style="text-align: justify;">E foi bom demais. Mergulhei em poesia como não fazia há tempos. Sempre amei poesia - foi uma das minhas primeiras paixões -, mas, por um tempo, passei por outros caminhos. O reencontro poético aconteceu por causa de John Keats, poeta romântico do início do século XIX que marcou profundamente o meu 2022. Também li muitas coisas relacionadas à Grécia antiga - desde textos escritos naquela época até releituras a respeito de mitos e deuses. As palavras de Shakespeare também se fizeram presentes no meu ano - o que foi ótimo, pois amo demais os escritos do bardo inglês. </p><p style="text-align: justify;">Também li muitos romances românticos, seguindo com um gosto que descobri no ano retrasado, assim como li bons livrinhos no <a href="https://www.queridoclassico.com/p/clube-do-livro-querido-classico.html" target="_blank">Clube do Livro QC</a> - e me surpreendi demais com as leituras e releituras. Alguns livros que já tinha lido há um tempão e amado, não gostei tanto dessa vez; já outros, amei ainda mais. Foram ótimas leituras no geral - e o melhor talvez seja a conversa que sempre rola nos encontros do clubinho. As gurias que participam são umas queridas. É bom demais fazer um clube do livro. </p><p style="text-align: justify;">Bem, vamos para a lista do que foi lido em 2022. Como sempre, tenho quase certeza de que estão faltando alguns títulos (os próprios apps de registro de leituras, <a href="https://www.goodreads.com/user/show/57588640-mia" target="_blank">Goodreads</a> e <a href="https://www.skoob.com.br/usuario/391432" target="_blank">Skoob</a>, marcam números diferentes do que foi lido neste ano, risos), mas vamos lá. Aqui estão os (pelo menos) 50 livros que li no ano passado: </p><h2 style="text-align: center;">Lidos em 2022</h2><p style="text-align: center;"><i>Um toque de escuridão</i> • <i>Cilada para um marquês</i> • <i>A uma taça feita de um crânio humano</i> • <i>Entre a culpa e o desejo</i> • <i>Entre o amor e a vingança</i> • <i>Entre a ruína e a paixão</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/04/a-epoca-da-inocencia-o-tormento-do-amor.html" target="_blank">A época da inocência</a></i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/09/hamlet-e-loucura-medieval.html" target="_blank">Hamlet</a></i> • <i>Nunca julgue uma dama pela aparência</i> • <i>Um quarto com vista</i> • <i>Perigo para um inglês</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/03/o-piano-circe-e-mulher-silenciada.html" target="_blank">Circe</a></i> • <i>O visconde que me amava</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/06/bright-star-keats-fanny-amor.html" target="_blank">Bright Star: love letters and poems of John Keats to Fanny Brawne</a></i> • <i>Um perfeito cavalheiro</i> • <i>Os segredos de Colin Bridgerton</i> • <i>Para Sir Phillip, com amor</i> • <i>O conde enfeitiçado</i> • <i>Um beijo inesquecível</i> • <i>A caminho do altar</i> • <i>E viveram felizes para sempre</i> • <i>As 29 poetas hoje</i> • <i>Harry Potter e a pedra filosofal</i> • <i>As bacantes</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/10/o-gotico-e-o-politico-em-john-keats.html" target="_blank">Nas invisíveis asas da poesia</a></i> • <i>Góticos</i> • <i>A diferença invisível</i> • <i>O papel de parede amarelo e outras histórias</i> • <i>Lumberjanes, vol. 1</i> • <i>Coração mal-assombrado</i> • <i>Ou isto ou aquilo</i> • <i>Bartleby, o escrivão</i> • <i>Lore Olympus, volume um: histórias do Olimpo</i> • <i>Lore Olympus, vol. 2</i> • <i>Lore Olympus, vol. 3</i> • <i>Lore Olympus, vol. 4</i> • <i>Mrs. Dalloway em Bond Street</i> • <i>Só o amor é real</i> • <i>Muitas vidas, muitos mestres</i> • <i>A fera na selva</i> • <i>Milagres acontecem</i> • <i>Carmilla</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/11/padre-sergio-tolstoi.html" target="_blank">Padre Sérgio</a></i> • <i>The letters of Fanny Brawne to Fanny Keats, 1820-1824</i> • <i>Noite na taverna e Macário</i> • <i>Terror depois da ceia</i> • <i>Lore Olympus, volume dois: histórias do Olimpo</i> • <i>As convidadas</i> • <i>Tender is the flesh</i> • <i>A tempestade</i></p><h2 style="text-align: center;">Maior livro</h2><p style="text-align: center;"><i>A época da inocência</i>, de Edith Wharton, com 416 páginas.</p><h2 style="text-align: center;">Menor livro</h2><p style="text-align: center;"><i>As bacantes</i>, de Eurípedes, com 91 páginas.</p><h2 style="text-align: center;">Melhores do ano</h2><p style="text-align: justify;"></p><div style="text-align: center;"><i><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7VKGTOywvhOjxlshV4hyfWBYn2N3rYBi_gfFVhIGz7UP5iGtJixOp5H-W3l127-_vW_ffn7FGQKGOScgo4_c0pAHQFSJwy1n9p5XrNIh355k1jNC_srZPVl0_PinGI5M2FkAqpv4rCxTBRqPUvYPoiOJS0tGpFbffA2MwqQH_h9f2i-DVXwS3xBko/s1300/melhores-livros-20221.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="1300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7VKGTOywvhOjxlshV4hyfWBYn2N3rYBi_gfFVhIGz7UP5iGtJixOp5H-W3l127-_vW_ffn7FGQKGOScgo4_c0pAHQFSJwy1n9p5XrNIh355k1jNC_srZPVl0_PinGI5M2FkAqpv4rCxTBRqPUvYPoiOJS0tGpFbffA2MwqQH_h9f2i-DVXwS3xBko/s16000/melhores-livros-20221.png" /></a></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div></i></div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/04/a-epoca-da-inocencia-o-tormento-do-amor.html" target="_blank">A época da inocência</a></b></i>, de Edith Wharton</div><div style="text-align: center;"><span style="text-align: left;"><b><i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/06/bright-star-keats-fanny-amor.html" target="_blank">Bright Star: love letters and poems of John Keats to Fanny Brawne</a></i></b></span>, de John Keats</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/09/hamlet-e-loucura-medieval.html" target="_blank">Hamlet</a></b></i>, de William Shakespeare</div><div style="text-align: center;"><i><b>As bacantes</b></i>, de Eurípides</div><div style="text-align: center;"><b><i><a href="https://www.queridoclassico.com/2022/10/o-gotico-e-o-politico-em-john-keats.html" target="_blank">Nas invisíveis asas da poesia</a></i></b>, de John Keats<br /><i><b>Lore Olympus</b></i>, de Rachel Smythe</div><div style="text-align: center;"><i><b>O papel de parede amarelo e outras histórias</b></i>, de Charlotte Perkins Gilman</div><div style="text-align: center;"><b><i>Um quarto com vista</i></b>, de E. M. Forster</div><div style="text-align: center;"><i><b>A fera na selva</b></i>, de Henry James</div><div style="text-align: center;"><i><b>Coração mal-assombrado</b></i>, de Gih Alves</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBFYSqGzXDgTpV7U9x3v7oYj6m6keMmB6l3T3Ea7otN7tESrZLdjc6hhslYJ-4StO9itoqgwIRFhN2yLIlvRXvozj9zBIMN28NWfd-ucUyafCIUx2H8u0jYmDznT5G0GMttguJBu011vw4rMiSgbGj1PoWCZlqih39DRtubc116u7-17IgkYpbqAjw/s1300/melhores-livros-20222.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="1300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBFYSqGzXDgTpV7U9x3v7oYj6m6keMmB6l3T3Ea7otN7tESrZLdjc6hhslYJ-4StO9itoqgwIRFhN2yLIlvRXvozj9zBIMN28NWfd-ucUyafCIUx2H8u0jYmDznT5G0GMttguJBu011vw4rMiSgbGj1PoWCZlqih39DRtubc116u7-17IgkYpbqAjw/s16000/melhores-livros-20222.png" /></a></div><p></p><h2 style="text-align: center;">Melhores releituras</h2><p style="text-align: justify;"></p><div style="text-align: center;"><i><b>Carmilla</b></i>, de Sheridan Le Fanu</div><div style="text-align: center;"><i><b>Noite na taverna</b></i>, de Álvares de Azevedo</div><p></p><h2 style="text-align: center;">Quote preferido</h2><p style="text-align: center;"><i>“I find that I cannot exist without poetry—without eternal poetry—half the day will not do—the whole of it.”</i></p><p style="text-align: center;"><span style="font-size: x-small;">(JOHN KEATS, em carta a J. H. Reynolds datada de abril de 1817)</span></p><p style="text-align: center;">Me acompanhe no <a href="https://www.goodreads.com/user/show/57588640-mia" target="_blank">Goodreads</a> e no <a href="https://www.skoob.com.br/usuario/391432" target="_blank">Skoob</a> ♥</p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-52891808619238972542022-12-06T01:05:00.001-03:002022-12-06T01:05:51.460-03:00A morte é uma coisa estranha <div style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIOFYkAeFC80xC-l668XZhuVrt-r3POp7-K2rjEQbRl9PW3WhwVGo9L4z_2z9T7hXgiTPFz0I00HkG9-AY9RzPZpTz6v9w5KV1p3wMdDKlxcQbj1BajONqZnUvT_nIqInojOC2dEtfuHzsGHZ3mlSAGbIZfbwiZIcr5egWeenxYTuZWUFpgTP0suTz/s3602/Horace_Vernet_-_The_Maiden's_Lament.jpg"><img border="0" data-original-height="3602" data-original-width="2956" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIOFYkAeFC80xC-l668XZhuVrt-r3POp7-K2rjEQbRl9PW3WhwVGo9L4z_2z9T7hXgiTPFz0I00HkG9-AY9RzPZpTz6v9w5KV1p3wMdDKlxcQbj1BajONqZnUvT_nIqInojOC2dEtfuHzsGHZ3mlSAGbIZfbwiZIcr5egWeenxYTuZWUFpgTP0suTz/s16000/Horace_Vernet_-_The_Maiden's_Lament.jpg" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Nunca soube lidar muito bem com a estranheza da morte porque o que sempre permaneceu foi o sentimento de que a pessoa ainda existia - eu apenas não podia falar com ela. E talvez seja isso mesmo. Talvez o infinito seja o tempo da morte. A espera interminável por uma comunicação que não vai mais acontecer. E o agora, em contraposição, seja a urgência da vida - correr, dançar, falar, estar entre aqueles a quem amamos, tudo no agora, pois o amanhã é esse infinito indizível. </div><p style="text-align: justify;"><i><b>Mrs. Dalloway</b></i> é um dos livros mais violentos que já li. Violento porque nele as personagens encontram-se no que agora chamamos de pós-pandemia. A gripe espanhola, que assolou o mundo, matando aos milhões, havia chegado ao fim - mas restava uma população desgastada, com sequelas físicas e emocionais. A própria personagem-título, Clarissa Dalloway, é uma delas. Após a doença, ficou fraca. Por isso, é tão importante a frase que abre o livro: <i>"Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores"</i>. É a urgência da vida em contraponto com a espera da morte. </p><p style="text-align: justify;">No conto <i><b>Mrs. Dalloway em Bond Street</b></i>, um esboço do que viria a ser <i><b>Mrs. Dalloway</b></i>, podemos assim dizer, Virginia Woolf escreve que Clarissa está caminhando em seu trajeto para comprar flores e luvas, mas sua mente insiste em voltar aos temas de que ela tanto tenta se afastar. Enquanto passa por lojas, pessoas e observa a vida ao redor, que voltara àquela Londres devastada pela guerra e pela pandemia, a mente de Clarissa lhe puxa para a lembrança da morte ao persistir em fixar o pensamento em <i>Adonais</i>, poema que Percy Shelley escreveu como elegia a John Keats, e a <i><b>Cimbelino</b></i>, de Shakespeare, especialmente a passagem em que, antes de um sepultamento, há um discurso fúnebre muito poético. </p><p style="text-align: justify;">Desde ontem, encontro-me no mesmo estado de Clarissa Dalloway, com o meu pensamento insistindo em fixar-se em <i><b>Cimbelino</b></i>: </p><p style="text-align: center;"></p><blockquote style="text-align: center;">“Não temas o sol ardente nem o inverno enregelado; já descansas sorridente depois de cumprido o fado. O velho, a moça fagueira, o vilanaz, tudo é poeira. Não temas os poderosos, a vingança dos tiranos; livre estás dos dolorosos apetites dos humanos. Os ricos, a ciência inteira, bons e os maus, tudo é poeira. Do raio não tenhas medo, nem do trovão ribombante, o amigo não temas tredo, nem o inimigo arrogante. Moços e velhos, em fieira, sempre terminam em poeira. Nenhum encanto te ofenda de algum mago ou bruxa horrenda. Que espectro nenhum se prenda a essa tua eterna tenda. Que nome tenhas eterno em teu leito sempiterno.”</blockquote><p></p><p style="text-align: justify;">Abaixo, o discurso continua, dizendo: <i>"Tendo voltado para a terra fria, livres estão da dor e da alegria"</i> (tradução de Carlos Alberto Nunes). E o que é a morte senão esse findar das dores e aflições da vida? </p><p style="text-align: justify;">Exceto para os que ficam. <br />Aos que ficam, existe o luto - essa eternidade indizível. </p><p style="text-align: justify;">Mas somos Clarissa Dalloway, dizendo que nós mesmas compraremos as flores, ainda que uma centena de pessoas pudessem fazê-lo em nosso lugar, porque a urgência da vida - o reconhecimento da eternidade silenciosa da morte - nos impele a tal. Mas nem todos podem, e talvez jamais consigam, afastar o espectro da morte de seus pensamentos após terem contemplado sua silhueta diáfana tão de perto. </p><p style="text-align: justify;">Quando a pandemia começou, <a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/09/o-ano-do-pensamento-magico.html" target="_blank">escrevi sobre <i><b>O ano do pensamento mágico</b></i>, livro da Joan Didion</a>. Lá, eu disse: <i>"A rigidez do tempo é só um escape para não enlouquecermos. O tempo da morte é em todo o lugar e ocupa o não-tempo, as lacunas, a espera. Talvez seja isso a que chamamos de eternidade"</i>. E essa eternidade parece prolongar-se quando a vida nos surpreende. O arrefecimento da pandemia (não seu final - apenas um arrefecimento, já que o fim social de algo não significa o fim biológico, que ainda vai demorar um tempo) nos fez pensar em reuniões, na possibilidade do reencontro, em tudo o que perdemos e em tudo o que permaneceu. </p><p style="text-align: justify;">A vida é um estado de impermanência; a morte é eterna.</p><p style="text-align: justify;">Após anos de pandemia, finalmente meu tio, que morava no Rio de Janeiro, conseguiria viajar para cá, para passarmos o fim de ano juntos, toda a família. Isso foi combinado ainda esta semana. Então veio a morte - e a urgência da vida cessou. Agora o que resta é a eternidade indizível. </p><p style="text-align: justify;"><i>"Não temas o sol ardente nem o inverno enregelado; já descansas sorridente depois de cumprido o fado. [...] Tendo voltado para a terra fria, livre estás da dor e da alegria."</i> Descanse em paz, tio Zé. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"></span></p><hr /><span style="font-size: x-small;"><br /></span><div><span style="font-size: x-small;">A pintura acima é <i>The maiden's lament</i>, de Horace Vernet (1789-1863), e este texto foi <a href="https://mailchi.mp/8d1735c5c63a/3-querido-classico-a-eternidade-e-a-semana" rel="nofollow" target="_blank">originalmente publicado na newsletter do Querido Clássico</a>, no dia 27 de novembro de 2022. </span><p></p></div>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-23961428459702413142022-07-05T14:28:00.000-03:002022-07-05T14:28:01.423-03:00Fleabag é a história de amor do século XXI <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqh4vgJfqrEjQfYCM1oBHoNAxnMMAv08umKpc9IBe6h1aHGYgkhfVLDTgxFSG3etnh845jDXmTTVmVLK1PfkwgpFUefcCPoCeNnGCYtrKl6QHnag0rqXBLiQuoQ4UP8l4_PoYQqnWN6YGnkTfDcxuXf0KPeob02zPg5q-Qdo4bYjcfS8Z6jGE-lF5q/s1800/fleabag.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqh4vgJfqrEjQfYCM1oBHoNAxnMMAv08umKpc9IBe6h1aHGYgkhfVLDTgxFSG3etnh845jDXmTTVmVLK1PfkwgpFUefcCPoCeNnGCYtrKl6QHnag0rqXBLiQuoQ4UP8l4_PoYQqnWN6YGnkTfDcxuXf0KPeob02zPg5q-Qdo4bYjcfS8Z6jGE-lF5q/s16000/fleabag.png" /></a></div><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;"><i>
“Esta é uma história de amor.”</i> É com essas palavras que começa a segunda temporada de <i><b>Fleabag</b></i>. No entanto, apesar de a personagem principal que dá nome à série, interpretada por Phoebe Waller-Bridge, quebrar a quarta-parede, olhar para a câmera e nos dar o que poderia ser considerado um inofensivo spoiler a respeito do conteúdo de sua história, o que vemos são seis episódios de relacionamentos conturbados, sofrimento e a vida sendo injusta. Onde está o amor em tudo isso, afinal? </div>
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Foi essa a pergunta que ficou martelando na minha cabeça quando desliguei a televisão após ter assistido a todos os episódios de uma só vez. Se aquela é uma história de amor, por que a sensação que eu tinha era de algo inacabado e longe de romântico? A dúvida me atormentou tanto que tive de rever a série, do início ao fim. Não é um trabalho árduo, já que as duas temporadas contam com somente doze episódios ao todo, cada um com menos de meia hora. Porém o trabalho de Phoebe Waller-Bridge, que além de protagonizar também é responsável pela criação da série, é inteligente e sutil o suficiente para não subestimar o público com receitas clichês de amor — apesar de haver um grande clichê na história: o Padre Gato (Andrew Scott). </div>
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Uma das coisas de que mais gosto em <i>Fleabag</i> é que a maioria de seus personagens não possuem nomes. A própria protagonista atende pelo apelido que dá título à série, e que literalmente significa “saco de pulgas”. O Padre Gato (tradução livre de Hot Priest, no original) também só atende por Padre. O pai (Bill Paterson) e a madrasta (Olivia Colman) de Fleabag tampouco possuem nomes. Com isso já temos a sacada genial a respeito do que se trata essa história. Assim como acontece em fábulas, nas quais animais representam arquétipos do ser humano e atendem por Pato, Rã, Lebre etc., a série quase não utiliza nomes porque seus personagens são arquétipos de coisas com as quais Fleabag precisa lidar durante sua trajetória. O pai representa a rejeição que ela sente vinda da família; a madrasta é o sentimento de que as pessoas são facilmente substituíveis; e o Padre Gato representa a esperança de redenção. </div>
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A princípio, pensei que ele representasse o amor, pois o vínculo de ambos vai crescendo durante a temporada até se transformar em um relacionamento amoroso de fato. As conversas entre as missas, as bebedeiras em conjunto, a cena do confessionário, tudo nos leva a crer que Fleabag finalmente encontrou alguém com quem se importa de verdade, o suficiente para tentar construir um relacionamento afetivo saudável. No entanto, como sua psicóloga (Fiona Shaw) bem pontua: “<i>Você quer foder com o padre ou quer foder com Deus?”</i>. É uma pergunta para a qual a nossa protagonista não tem resposta.</div>
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Apesar de ser ateísta, ao longo da temporada ela parece começar a desenvolver a fé em algo, a princípio por causa do interesse amoroso no Padre, mas depois genuinamente, talvez pelos pequenos sinais da existência de algo maior, que a série comicamente coloca em momentos de negação da fé, como quando um quadro cai, fazendo um estardalhaço, ao que o Padre Gato aponta que adora quando “Ele” faz isso, ou na própria cena altamente sensual do confessionário, quando a grande porta da igreja bate no momento em que eles estão prestes a transar. Não que ela precise acreditar em Deus ou que a série seja a busca da personagem por uma fé — longe disso. Mas Fleabag precisa acreditar em si própria. Por meio de flashbacks que nos fazem compreender a dor dela e a causa de todo o ressentimento e autossabotagem, descobrimos que ela está em luto, tanto pela mãe quanto pela melhor amiga, Boo (Jenny Rainsford), por cuja morte ainda se culpa. Diante dessas circunstâncias, é fácil entender que “foder com Deus” seria mais uma forma de se punir por coisas que ela não poderia controlar. E, para isso, é preciso acreditar em algo. Nem que seja na possibilidade de uma redenção para a qual ela não se sente merecedora. </div>
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<div style="text-align: center;"><span><blockquote>
“Eu só quero alguém que me diga como viver a minha vida, Padre, porque até agora eu acho que fiz tudo errado, e eu sei por que as pessoas querem alguém como você em suas vidas, porque você apenas diz para elas como fazer. Você simplesmente diz para elas o que fazer e o que elas vão conseguir ao final das contas, e mesmo que eu não acredite nas suas bobagens, e eu sei cientificamente que nada do que eu faço faz a diferença no fim das contas, eu ainda estou com medo. Por que eu ainda estou com medo?”</blockquote></span></div>
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Se sentindo culpada pela morte da amiga e desamparada após a morte da mãe, Fleabag recebe a depressão de braços abertos e tenta encontrar maneiras de se punir, tornando sua vida sem sentido e estragando seus relacionamentos. Através de toda a primeira temporada podemos vê-la desprezando o namorado (que, de fato, não era grande coisa, mas estava lá) até o ponto de assistir a tanta pørnografia que o cara vai embora definitivamente após muitas idas e vindas. A vemos pulando de cara em cara, com relacionamentos rápidos e somente sexuais que não significam nada — pelo menos não até o momento da rejeição, que sempre é um momento de dor disfarçada pela quebra da quarta-parede, com a história inventada de que tudo que acontece na vida dela é parte de um show e que ela está interpretando algo para uma audiência. Uma das formas de se fugir da dor é se dissociando de si mesma, se enxergando como uma personagem e se punindo, agindo de forma descuidada apenas para gerar boas histórias. Fleabag gera boas histórias com certeza, mas isso não lhe faz bem algum.</div>
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O uso do sexo como forma de se sentir desejada e preencher o vazio que a consumia tanto pelo desprezo da família quanto pela culpa pela morte da amiga é compulsório, mas ela simplesmente não sabe como parar. Já que a amiga morreu em função de uma traição do namorado com a própria Fleabag, ela usa o sexo para se punir. A primeira temporada é angustiante, apesar de cômica, mas a comicidade também faz parte da depressão, a necessidade de colocar uma máscara debochada e fingir que está tudo bem. O problema não é o sexo casual, mas a culpa que a leva até ele. Talvez Phoebe Waller-Bridge tenha escolhido o sexo como ponto de escape para ignorar a depressão da personagem principal porque é muito comum vermos isso acontecer com homens em séries televisivas, mas não com mulheres. Contudo fazer sexo casual para ignorar problemas é normal a seres humanos de todos os gêneros. Sexo é um dos nossos instintos mais básicos e é ridículo pensar no quão romântico ele é tratado exclusivamente sob a perspectiva feminina. Transar por transar é normal, e esse está longe de ser o problema de Fleabag. O problema é que ela se fere no processo, se corroendo pela culpa. Como o pai dela disse durante uma conversa particularmente tocante,<i> “Você acha tudo tão doloroso porque sabe amar melhor do que todos nós”</i>. Ela possui sentimentos, muitos, mas os engole e mascara sua dor com um cinismo debochado que só faz mal a ela, tudo porque não se sente digna de ser feliz. </div>
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Quando Fleabag conhece o Padre Gato durante o jantar de noivado do pai dela e da madrasta, pouco mais de um ano havia se passado entre a primeira e a segunda temporada. Nesse intervalo de tempo, nos é brevemente mostrado que ela conseguiu controlar seu impulso autodestrutivo sexual, começou a se exercitar e a levar a sério seu café, administrando-o tão bem a ponto de o local ficar lotado em dias de semana. Apesar de seus problemas, ela está estável, se mantendo firme, e estabeleceu uma distância segura entre ela e a família, a quem não via há um bom tempo. </div>
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É importante ressaltar que Fleabag não simplesmente conheceu o Padre Gato e ficou livre da depressão e pronta para amar. Ela conheceu muitos homens e nenhum a curou. Ainda que o Padre esteja fora do estereótipo, já que bebe o tempo todo e fala um palavrão a cada dez palavras, além de realmente ser atencioso e se preocupar com ela, a resposta da depressão não está em um homem. A série mostra isso, mas tendemos a romantizar qualquer narrativa, o que é normal, já que fomos criadas dessa maneira tanto pela sociedade em geral, com seus estereótipos de feminilidade e salvação pelo romance, quanto por produções artísticas, como o cinema, que por um bom tempo nos saturou com comédias românticas em que a mocinha encontra o sentido da vida após conhecer um certo cara bonitão e diferente. <i>Fleabag</i> não é esse tipo de história. E o Padre Gato não é sua história de amor. </div>
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Sendo Fleabag uma personagem sem nome, ela também representa um arquétipo social, e esse é o arquétipo da mulher moderna do século XXI que se culpa por tudo e tenta se autossabotar como uma espécie de mecanismo de destruição. A forma como despreza as pessoas, usa homens para se satisfazer sexualmente, deixando-os até mesmo fazer coisas que ela nem queria só para ter um momento de prazer físico com alguém, é um dos retratos mais reais de como lidamos com a depressão hoje em dia. Podemos buscar sentido no sexo, no sono, em drogas, em programas de televisão ou mesmo em pessoas, não as enxergando mais como alguém real, mas sim como uma âncora idealizada que irá nos salvar. Fleabag não possui uma âncora e se sente cada vez pior enquanto finge desprezar as pessoas quando na verdade gostaria apenas do amor e da aceitação delas. No entanto, ela só reconhece isso quando, após uma conversa franca sobre o envelhecimento feminino com uma executiva (Kristin Scott Thomas) que trabalha com sua irmã, ela diz que não tem nada para ela naquela festa pois as pessoas são idiotas, ao que a mulher mais velha lhe responde que <i>“querida, tudo o que temos são as pessoas”</i>. É nesse momento que algo começa a ser remexido em Fleabag, algo que ainda não havíamos visto de fato, pois estava escondido sob camadas e camadas de cinismo. Ela, como qualquer pessoa, quer ser amada, mas não gosta de si mesma o suficiente para se permitir isso. </div>
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Apesar de haver amor entre Fleabag e o Padre Gato, a história de amor não é sobre eles como um casal. O Padre, sendo o arquétipo da esperança e redenção, auxilia Fleabag por ter sido o primeiro a enxergá-la de fato, por inteiro, para além de seu cinismo e dos momentos em que desaparecia e conversava com a câmera. Por sua sensibilidade e verdade, por ele mostrar que não é uma pessoa perfeita e está longe de ser um homem de Deus incorruptível como o cargo sugere, por ser a primeira pessoa na série, além da protagonista, que expõe seus defeitos sem grandes vergonhas, ela consegue se permitir ser amada. Porque, a partir desse ponto, ele deixa de ser um estereótipo e passa a ser uma pessoa. Isso seria ainda mais visível se ele ganhasse um nome próprio, o que não acontece, mas o que acontece é um diálogo, pouco antes da cena do confessionário, em que ele salienta descaradamente para ela que ela o chama de Padre como isso não lhe causasse tesão. A recusa em usar um nome próprio é escrachada ali porque ele a enxerga verdadeiramente. E é nesse momento que ela se abre para o amor. Contudo se abrir para o amor não significa ter um final feliz de novela, com casamento, filhos e uma vida tradicional. A vida de comercial de margarina já deixou de existir há algumas décadas — até porque só existia na aparência — e esse certamente não é o destino da nossa protagonista. </div>
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A temporada inteira está repleta de pessoas aceitando o amor. Não há nenhum personagem que não seja problemático ali. O pai está se casando pela segunda vez com a madrinha de suas filhas. Claire (Sian Clifford), a irmã de Fleabag e uma das únicas personagens que possuem nome próprio, está presa em um relacionamento com Martin (Brett Gelman), um homem nojento, misógino e alcoólatra. O Padre não consegue decidir se dá vazão a seus sentimentos e instintos sexuais ou se continua celibatário, obedecendo às ordens da igreja. Entre Fleabag e Deus, quem ganha? </div>
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O pai de Fleabag seguiu em frente após a morte da esposa e encontrou novamente o amor. A irmã dela tomou coragem e saiu de um relacionamento péssimo para ir atrás de um homem finlandês que não saía da sua cabeça. Mas Fleabag, apesar de seu desprendimento para se envolver fisicamente com pessoas, não conseguia abrir seu coração. E a verdadeira história de amor da temporada é esta: aprender a amar e se permitir ser amado, apesar de todos os problemas e defeitos e erros do passado. </div>
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Estamos todos fodidos. E tudo o que temos são as pessoas. O amor é horrível. A vida é injusta. Essas são algumas das lições que <i>Fleabag</i>, uma das melhores séries da atualidade, traz. Mas apesar de todo o discurso maravilhosamente real que o Padre Gato realiza na cerimônia de casamento do pai e da madrasta, falando sobre como o amor é horrível e, por isso mesmo, é para os corajosos, eles não ficam juntos. É Deus quem ganha o coração do Padre, embora ele admita que ama Fleabag em uma cena particularmente sensível e tocante, quando pela primeira vez ela se expõe e declara seu amor por ele. </div>
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Essa abertura emocional é a história de amor. Aceitar o amor, amar a si mesma, apesar de tudo ou por causa de tudo. Essa é a história de amor do século XXI: não mais a respeito de casais, já que aceitamos que relacionamentos possuem um tempo e que tudo bem quando não dão certo. Nem sempre uma pessoa a quem amamos permanece na nossa vida, mas as coisas que passamos com ela permanecem e nos transformam. A verdadeira história de amor de Fleabag é sua jornada de luto e depressão até o momento em que ela aceita que está tudo bem sentir tristeza e não saber ao certo seu lugar no mundo, que ela merece ser amada assim como qualquer outra pessoa. É nesse momento que ela vai embora sozinha daquele ponto de ônibus e impede a câmera de segui-la, finalizando assim um ciclo de interpretação, já que agora ela não precisa mais fingir ser uma personagem. Ela é só uma pessoa, uma mulher normal com dores e depressão, mas que não é menos digna de amor por isso. Fleabag está de coração partido, mas pronta para um relacionamento e curada de suas feridas do luto, não precisando mais de um espectador para validar sua existência. </div>
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Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-66221414937116584382022-06-18T13:14:00.004-03:002022-06-19T14:01:27.681-03:00Tempo de anseios <table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6xNu_MwVkvPprwR7zTfJFEheYPDCpbpeI8XZI82ND7OKHU2Ah7POLtF8V10J8WvLldgNyiE1Nr9HPVKQ9ldbL-KvQHAC7mPhaxan0C-6VrzRicfNJBhzl4qTpcYWe8-H_JlGtGRemBJev5yJD8lDtYxWE0x-8mkcq5RoI0g9HA1dbT5Tk4mn24kKz/s700/heart-of-snow-edward-robert-hughes.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="460" data-original-width="700" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6xNu_MwVkvPprwR7zTfJFEheYPDCpbpeI8XZI82ND7OKHU2Ah7POLtF8V10J8WvLldgNyiE1Nr9HPVKQ9ldbL-KvQHAC7mPhaxan0C-6VrzRicfNJBhzl4qTpcYWe8-H_JlGtGRemBJev5yJD8lDtYxWE0x-8mkcq5RoI0g9HA1dbT5Tk4mn24kKz/s16000/heart-of-snow-edward-robert-hughes.jpg" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>Heart of snow</i>, de Edward Robert Hughes</td></tr></tbody></table><p style="text-align: justify;">Há algum tempo estava eu numa conversa dizendo que <i>"pelo menos a varíola foi erradicada"</i>. Aí me aparece a varíola do macaco. Em outro momento, estava dizendo que <i>"pelo menos a tuberculose está sob controle e há tratamento para isso"</i>. No dia seguinte, sai uma matéria na tv local dizendo que a pandemia de tuberculose nunca parou, com números crescentes ultimamente - e os medicamentos não fazem efeito em todo mundo. </p><p style="text-align: justify;">No início da pandemia, eu falei diversas vezes que estávamos vivendo os novos anos 20: não porque estamos, de fato, no início da década de 2020, mas também porque os anos 20, ou <i>roaring 20s</i>, ficaram conhecidos por ser esse período marcado por uma pandemia de gripe espanhola que havia acabado de assentar, um período entre guerras, e também um momento em que todo mundo ficou meio doido da cabeça e saiu pra beber e fazer festas num estado desesperado mesmo ou por causa da pandemia. Mas esses foram os 1920. O que sinto agora é que enquanto as pessoas estão na década do Fitzgerald, eu estou em outros anos 20: a década de 1820. Com o Keats, o pessoal das varíolas, da tuberculose e da melancolia dos Românticos. </p><p style="text-align: justify;">Ainda no século XIX, o próprio Álvares de Azevedo (isso já em terras brasileiras), nosso representante do ultrarromantismo gótico, escreveu em <i>Noite na taverna</i> um cenário que não é tão diferente do atual. Enquanto as pessoas morriam pela epidemia de cólera, na taverna diversas outras se reuniam e bebiam juntas, fazendo festa e vivendo aquele momento com uma intensidade que pode ser lida como desmedida. É a <i>Danse Macabre</i>? É a pulsão de morte? Ou, como pode ser lido de acordo com a teoria do gótico literário, são aqueles personagens essencialmente góticos, por terem se permitido dessensibilizar pela dor da doença, da morte, da tragédia alheias, e seguem festejando, ainda que os gritos e choros de tantas perdas possam ser ouvidos do lado de fora da taverna? São questões. E a comparação com a realidade atual é um exagerada, mas existe uma correlação entre pandemias e surtos de celebrações - celebrações estas feitas sob o risco do contágio, diga-se de passagem. </p><p style="text-align: justify;">Mas consigo compreendê-los. Eu não sou uma pessoa de exageros no sentido de festas, porém acredito que períodos extensos de doenças coletivas, medo e perda nos levam àquilo que realmente somos, seja lá o que for isso. Quando a vida está prestes a cessar, nos voltamos para a nossa essência. Para uns, pode ser o buscar de uma natureza sociável, o estar entre pessoas e com elas viver e celebrar enquanto houver vida. Para outros, como eu, trata-se de recolher-se em si mesmo e contemplar o que há de melhor no mundo: a arte. Ler, assistir filmes, estudar manifestações artísticas e, por que não, criar. Enquanto houver vida para tal. </p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-86427776896655031042022-06-11T13:46:00.004-03:002022-06-11T20:13:56.698-03:00Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos. <table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEir4y6Q2OlbLf_dA5unxpBbHjvcL2cYMkwEeR094_RmTRWNzE726n_BT2NZ_onxeTXs5WeGfqupoieRJ1N-4XTj-fOoTMJ1JR14dJ7sqr1Mh659m6admbubiEuk6Nnmn3uZvqSOv3OeaPQ0tu_V5lEck_3PIBWKvsioU-5iPRi-_usTy36MJsCleA-A/s2000/Miranda_-_John_William_Waterhouse.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1484" data-original-width="2000" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEir4y6Q2OlbLf_dA5unxpBbHjvcL2cYMkwEeR094_RmTRWNzE726n_BT2NZ_onxeTXs5WeGfqupoieRJ1N-4XTj-fOoTMJ1JR14dJ7sqr1Mh659m6admbubiEuk6Nnmn3uZvqSOv3OeaPQ0tu_V5lEck_3PIBWKvsioU-5iPRi-_usTy36MJsCleA-A/s16000/Miranda_-_John_William_Waterhouse.jpg" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>Miranda</i>, de John William Waterhouse (1875)</td></tr></tbody></table><br /><div style="text-align: justify;">Como disse no início da pandemia, <a href="https://www.nacabeceira.com.br/search/label/tempo%20sem%20tempo?max-results=12" target="_blank">estamos vivendo num tempo sem tempo</a>. Pelo menos eu estou. Enquanto escrevo, Billy Joel canta <i>Vienna</i> no meu fone de ouvido: <i>slow down, you're doing fine, you can't be everything you wanna be before your time</i>. Eu acredito nisso. E vivo nesse ritmo mesmo, às vezes dançando, às vezes quase me arrastando da cama tal qual uma zumbizinha que ainda não entendeu como funciona a sua nova coordenação motora. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bem, é a vida. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A verdade é que eu não me importo de estar sozinha. E talvez seja isso o que me incomode a ponto de escrever sobre. Não deveria me incomodar? Para alguém que gosta tanto assim dos poetas Românticos, eu sou prática demais. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Às vezes me pergunto se eu perdi a capacidade de viver um grande amor da forma como ele deve ser vivido, com grandes gestos, sentimentos que mal cabem no peito e uma vontade incontrolável de sair correndo para os braços do outro. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i>[why do I find it hard to write the next line? I want the truth to be said.]</i></div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;">Acho que todos esses anos de espera, de estudo, de deixar para lá tantas coisas para me dedicar a um objetivo, tudo isso me tornou muito pacienciosa. Eu certamente não tenho mais a pressa que eu tinha quando era adolescente. E embora os meus sentimentos sejam intensos, eles são bem mais tranquilos. Não é mais a intensidade de uma tempestade, mas a profundidade de um lago - calmo, ainda que profundo. (O que é uma metáfora clichê, porém não menos verdadeira.) </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i>[nothing is gonna change my world]</i></div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;">Sinto como se algo estivesse prestes a acontecer, e se eu ficar quietinha, fazendo as minhas coisas, sem fazer grandes gestos movidos pela pressa e pelo desejo de viver algo poético e enorme e bonito, as coisas vão se acertar. É como se algo estivesse em movimento. Tudo o que me trouxe até aqui parece ter me preparado para algo. E é estranha a maneira como as arestas têm se acertado, especialmente desde o início deste ano. Tudo o que sobrava de triste e perturbador foi sendo transformado, resolvido. Me sinto contemplando uma parte sem entender ainda o todo, mas apreciando a beleza e tranquilidade da vista mesmo assim. Algo está vindo. Eu não sei o que é, ou quando virá, mas sei que está vindo. O tempo é de silenciar, de aquietar, de respeitar o ar parado e suave que antecede os grandes eventos. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se a água parece rasa, é só porque ainda não mergulhamos nela. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i>[les ailes des moulins protègent les amoureux]</i></div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><hr /><br /><div style="text-align: justify;">*o título faz referência à peça <i>a tempestade</i>, de william shakespeare. a citação completa é: <i>“somos dessa matéria de que os sonhos são feitos. e a nossa vida breve é circundada pelo sono”</i>. a referência existe porque, além de bonita, a pintura que coloquei aqui é uma leitura do pré-rafaelita john william waterhouse para <i>a tempestade</i>, retratando uma de suas personagens, miranda, antes da tempestade chegar. </div>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-76386724161535800202022-01-17T16:21:00.004-03:002022-01-17T17:03:34.709-03:00Pessoas Normais, de Sally Rooney <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiw00TOrTeMJOr1LyRBcxgFuKlVwgSMsxQRffB86CG440iQ963cF3LMRgNJdh2S-WrRkcByYr4ddbv3Donq0mmeQpbZZBNFQ4TiVXLSmb9p6F173TB1VmkHr9-GO8qeRIpAm8xpVpj958A6nhPDwPwB51U6MCfzfMu0bqWnauKn6d2Jj6A4aiwyV-28=s16000" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">
O segundo livro da escritora irlandesa <b>Sally Rooney</b>, <i><b>Pessoas Normais</b></i>, foi publicado no Brasil em 2019, pela editora Companhia das Letras, com tradução de <b>Débora Landsberg</b>. Causando um burburinho desde antes do lançamento, esse parece ser o novo livro de cabeceira dos jovens-de-vinte-e-poucos-quase-trinta-anos. A forma como ela fala de sentimentos e as situações que criou, baseadas na vida de pessoas comuns, é reflexo da nossa própria geração. A passagem de uma adolescência deslocada e confusa para uma recém-adultez meio cínica, encarando a vida de frente, descobrindo amores e dissabores e tentando encontrar nosso espaço no mundo enquanto lidamos com pessoas de origens e pensamentos diferentes é o centro narrativo da autora.</div>
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O livro nos apresenta dois personagens principais, Marianne e Connell, e nós os acompanhamos desde a adolescência até o início da vida adulta. Tudo começa numa pequena cidade no interior da Irlanda quando Marianne se sente constrangida e atraída por Connell, o filho da empregada. Sally Rooney gosta de trabalhar com relações de classe em sua escrita, isso é algo que está sempre em evidência de alguma forma. Mas essa diferença social não impede que ambos se conectem já que, para além dos sentimentos, Marianne não é apenas uma garota rica, mas uma garota rica esquisita, de quem ninguém gosta. Ela lê mais do que todo mundo e possui uma atitude ao mesmo tempo blasé e agressiva, o que certamente não chama a atenção de forma amistosa. Enquanto isso, Connell é popular e querido, possui diversos amigos e pode se envolver amorosamente com quem quiser. Ele é desejado e respeitado. Mas ele quer Marianne, ainda que em segredo. É uma dinâmica semelhante a que vemos em <i><b>Um Dia</b></i>, de David Nicholls, com Emma e Dexter travando uma relação de poder e obsessão durante alguns anos, mas a diferença é que em <i><b>Pessoas Normais</b></i> essa dinâmica acontece no final da escola, não no término da graduação. </div>
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Apesar de existir uma tensão de poder aquisitivo e poder emocional, Marianne e Connell vivem durante anos uma relação sentimentalmente constante. Ainda que Marianne se encontre com outros caras, é com Connell que consegue se abrir verdadeiramente. E, mesmo que ele namore uma garota a quem ama, é só com Marianne que se sente confortável para ser quem é, ainda que isso signifique ser um pouco esquisito. Connell é emocionalmente inseguro, mas popular e agradável, ao menos até chegar à faculdade, em Dublin, onde se transforma em mais um rapaz comum, do interior e sem amigos. Marianne, por outro lado, se encaixa de cara naquela cidade. De família rica e com hábitos pedantes, não é difícil para ela encontrar um lugar no mundo durante seus anos universitários. Mas isso tem um preço, como tudo tem. </div>
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<div style="text-align: center;"><span style="font-size: x-large;"><i><b>
“Marianne tinha a sensação de que sua vida real acontecia em outro lugar, bem distante dali, acontecia sem ela, e não sabia se um dia descobriria onde era e se seria parte dela.”</b></i></span></div>
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No entanto, <i><b>Pessoas Normais</b></i> tem um sério problema: o desenvolvimento pessoal das personagens. O pior deles, talvez, seja a forma como a autora insere práticas BDSM na história. Alguns clichês ruins são utilizados como sendo a explicação da passividade de Marianne e o desejo de ser submissa aos seus namorados. A família abusiva e violenta é a justificativa para seu comportamento masoquista, o que leva a verdadeiras cenas de humilhação sexual e emocional e quase estupros, o que não me parece de acordo com verdadeiros relacionamentos BDSM. Também encontramos indícios disso em <i><b>Conversas Entre Amigos</b></i>, mas de outra forma, uma forma que parece melhor trabalhada, ainda que não seja tão bem desenvolvida. Frances sente vontade de mandar que Nick lhe bata só porque pode, porque sabe que ele é passivo. É outra dinâmica. Não existe a justificativa preguiçosa da menina rica com problemas em casa que gosta de apanhar de homens. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Existe toda uma polêmica envolvendo relacionamentos BDSM mas, longe de estar em posição de julgar o que dá prazer a outra pessoa, esses relacionamentos podem ser saudáveis. Escrever uma mulher que quer ser submissa porque sofreu violência de seu irmão é jogar no lixo todos os anos de estudos e análises a respeito da experiência sexual livre. Marianne simplesmente poderia gostar da prática porque gosta, sem a necessidade de um background violento — e não desenvolvido — para isso. Nesse ponto, o livro me lembrou muito <i><b>Cinquenta Tons de Cinza</b></i>, com seu background clichê para explicar os desejos de Christian Grey. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro problema é a falta de originalidade. Sally Rooney é uma boa escritora, sua prosa consegue envolver o leitor de uma forma emocional e reflexiva, mas seu segundo livro parece muito mais uma repetição de referências. Embora seja um grande sucesso no meio literário, é perceptível a emulação de padrões que já conhecemos. Toda a estrutura de sua narrativa é uma grande mistura entre <i><b>Um Dia</b></i> com o primeiro livro da autora, <i><b>Conversas Entre Amigos</b></i>. Capítulos e diálogos inteiros parecem ter sido apenas melhorados de um livro para o outro (os capítulos da viagem com amigos, por exemplo, a tensão sexual, os sentimentos complicados… eles existem em ambos os livros, mas em <i>Conversas</i> existe um desenvolvimento melhor), deixando a impressão de que <i><b>Pessoas Normais</b></i> é a maneira de Sally Rooney tentar se reinventar dentro de seus próprios temas, algo que acho louvável e comum: muitos são os escritores que fazem isso. Contudo, ao contrário da maior parte da crítica, penso que ela, ao escolher esse caminho, acabou engessando seus próprios temas num molde estático de um modelo que funciona melhor em seu livro de estreia. </div>
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<br /></div>
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Se em <i><b>Conversas Entre Amigos</b></i> nós temos uma dinâmica interessante entre duas mulheres, Bobbi e Frances, e um relacionamento complicado com Melissa e Nick, em <i><b>Pessoas Normais</b></i> temos Marianne (personagem que também parece fazer parte do mesmo universo do primeiro livro, já que é mencionada algumas vezes nele) e Connell, um casal que poderia ter sido interessantíssimo caso já não o tivesse visto em outro livro. Como alguém que viveu o hype de <i><b>Um Dia</b></i>, é difícil ler a história de Marianne e Connell e não identificar neles Emma e Dexter. No entanto, o que Sally Rooney parece ter feito foi inverter os papéis ao fazer com que a personalidade e os conflitos de Emma fossem espelhados em Connell e os de Dexter, em Marianne. Ao mesmo tempo, a autora colocou traços de Frances em Marianne e de Bobbi em Connell. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="512" data-original-width="1024" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEitaGaRVlmNGaEZPoBfiNa2dlEELStrx9BlmnMO7CENwR_9PN7IknxIcglGsTJ8hd3tWepHArk5xp6EOV2YsfLqOC0-QsXjwGxBlFiG79eFYgZIvN4723B7INIxN4OrZOR2wjuJ7DPwaxEPGS6q4OS2EPL1ep5ByXUHS5i89zOG0vBXMU8q6o6H-QQ9=s16000" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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É normal que artistas trabalhem com temas. Todos temos os nossos, as pequenas questões que nos incomodam no meio da noite e nos fazem ficar acordados, pensando sobre o que poderia ter sido e o que será. Colocamos isso no que criamos. Sally Rooney parece ter feito o mesmo. Questionamentos sobre amor, relacionamentos, amizades, capitalismo, monogamia, lealdade e tendências masoquistas permeiam ambos os livros, mas me parecem melhor trabalhados — e de forma mais original — em <i><b>Conversas Entre Amigos</b></i>. </div>
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Mas livros semelhantes nunca foram feitos? Autores não têm o direito de se repetir? Com certeza têm, e a literatura — assim como a arte e o mundo, em geral — é feita de repetições. A questão não é o enredo possuir uma história que já vimos, mas como essa história é contada. E Sally Rooney possui uma voz cínica e distante, o que parece ter lhe conferido o título de uma narradora genuinamente millennial. Mas não é nada que já não tenhamos visto antes e com melhor qualidade. Inclusive, dela mesma. </div>
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<br /></div>
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A forma como enxergamos um produto artístico é muito pessoal. <i><b>Pessoais Normais</b></i>, entretanto, carrega problemas em outros pontos, como a caracterização de seus personagens. A primeira parte do livro, quando eles ainda estão na escola, é interessante e melhor aprofundada. No restante, parece que a autora não se deu ao trabalho de tentar entendê-los, fazendo com que tivessem atitudes sem nexo e a profundidade de uma colher de chá como símbolo da falta de maturidade na recente vida adulta. O livro possui uma proposta diferente, é claro, e, por isso mesmo, talvez não tenha funcionado tanto assim enquanto literatura. Penso que seria o tipo de história que funcionaria melhor numa adaptação, como uma série. Existem histórias que são melhores nas telas — como é o caso de Bridget Jones, por exemplo. <i><b>Pessoas Normais</b></i>, de fato, virou uma série, que não assisti, mas que tem sido frequentemente elogiada. Certamente, a história possui estrutura perfeita para o formato. </div>
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<br /></div>
<div style="text-align: center;"><span style="font-size: x-large;"><i><b>
“São engraçadas as decisões que a gente toma porque gosta de alguém, ele diz, e aí sua vida inteira muda. Acho que a gente está naquela idade esquisita em que a vida pode mudar muito por causa de decisões banais.”</b></i></span></div>
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<div style="text-align: justify;">Histórias de amor continuarão sendo feitas. Os temas se repetem, não há nada de mau nisso. A cada espaço de tempo, certos tipos de história voltam à tona e dominam as narrativas culturais. Há pouco, foram os vampiros que estavam em tudo: desde os livros de Stephenie Meyer até a série <i><b>True Blood</b></i>. Hoje, são os romances jovem-adultos, meio irônicos, meio esquisitos, com personagens péssimas e reais. Mas Marianne não me parece real, ela parece um grande clichê de diversas personagens que já conheci. </div>
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Toda geração parece ter sua voz e ter um artista escolhido para ser aquele cuja obra representa toda uma cultura (sempre branca, sempre classe média, sempre anglófona, mas essa é outra discussão). No caso de Sally Rooney, a geração é a millennial, a minha geração, aquela que quebrou a economia mesmo sem ter conseguido sair da casa dos pais ainda. No entanto, apesar de entender o ímpeto dessa afirmação, não consigo ver a escritora nessa posição. Uma das melhores coisas de nosso tempo é a pluralidade de vozes ao alcance de todos através da internet. Basta uma atualização push-up para que saibamos dos pensamentos de uma pessoa a quilômetros de distância e fiquemos verdadeiramente comovidos ou reflexivos com os pensamentos e vivências de alguém que nem conhecemos. Temos muitas vozes falando ao mesmo tempo. Somos plurais. Sally Rooney não é, e está tudo bem não ser. Ela pode representar uma parcela millennial — uma parcela branca, classe média alta, universitária e, basicamente, europeia —, mas não representa uma geração inteira, com suas diferenças de classe, língua e aspirações. Tentar colocá-la nessa caixinha é limitador e excludente. Ela é uma boa escritora, sabe usar as palavras, mas é isso, e nada muito além, ainda que existam diversas pessoas que se identificam com ela. No entanto, também existem aquelas que não conseguem se enxergar nas palavras de Rooney. E está tudo bem. </div>
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Artistas produzem obras de acordo com seu tempo, ainda que isso seja feito de forma não-intencional. Somos produtores e produtos de nossa época, o que não é ruim, mas pode significar que estamos dentro de padrões pré-estabelecidos e, por mais que nos esforcemos, vamos reproduzi-los de alguma forma. Entendo o rótulo de millennial dado a Sally Rooney, assim como o de voz de uma geração, mas não concordo com ele. Sim, seus livros falam sobre jovens ricos e pobres, tentando achar seu lugar no mundo numa época em que tudo está um caos, a política está a um passo da guerra, o meio-ambiente grita por socorro e os relacionamentos são líquidos. Mas e daí? Isso faz dela a voz de uma geração ou faz dela uma escritora preocupada em inserir em sua obra algumas pinceladas de temas atuais?</div>
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O que isso faz é com que um grande peso seja colocado sobre ela e sobre os leitores. Ela foi rotulada dessa maneira desde seu primeiro livro, o que pode ter afetado a estrutura do segundo. E nós, enquanto leitores, nos vemos constrangidos a gostar dele, já que grandes veículos e críticos afirmaram ser essa é a autora que fala por nós, ser esse o livro que nos retrata enquanto adultos em desenvolvimento. É um peso muito grande. O melhor seria deixarmos esses rótulos de lado e simplesmente curtimos a literatura porque ela é boa ou porque gostamos dos personagens ou mesmo da prosa de Sally Rooney. Deixar que ela seja só mais uma escritora dentre tantas outras é libertador. Assim como o é poder não gostar do livro. </div>
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Marianne e Connell são pessoas que passam a história toda se desencontrando, mas que possuem muitos sentimentos e memórias para ficarem completamente longe uma da outra. Já vimos isso muitas vezes, especialmente em Emma e Dexter, em <i><b>Um Dia</b></i>. Não consigo dissociar um romance do outro. Para mim, ambos são o mesmo, mas em épocas diferentes. </div>
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Talvez o trunfo de <i><b>Pessoas Normais</b></i> seja justamente a época em que ele se passa. É o agora, é o nosso presente, uma coisa cínica e meio desesperançosa mas, ao mesmo tempo, muito autoafirmativa. Estamos aqui, existimos, temos opiniões e não sabemos ao certo o que sentimos porque tudo acontece ao mesmo tempo e ainda não adquirimos maturidade suficiente para lidar com a vida adulta, apesar de precisarmos encará-la. Não é original, mas conversa com a nossa geração, que é o que importa, no final das contas. </div>
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Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-13381941196325167292022-01-01T05:04:00.001-03:002022-06-10T03:10:55.433-03:00Retrospectiva literária 2021 <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1000" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjYezEGtGFeFFkPvTlMt3qKsk3cwbCi4sGz6sTia0BOBuuVghCmHJ4Rrrfz4IJzH83JGfUosxhDLCM5vt4UM7b7ThCfDQdZ_tGgjywt9DHyEqLnKlV7TcuVAE_59dt-SPIyUSL6yWovhmyIk8oO9tRzA-f2fCTP0AchCNLO7KHZ7Z4_7YJd96em-1PO=s16000" /></div><p style="text-align: justify;">Em 2021, eu abandonei muitos livros. Não tem exatamente um porquê e é algo bem inédito na minha vida. Acho que antes só havia abandonado uns dois ou três. Mas neste, numa conta rápida, foram pelo menos 10 livros abandonados. Não é que fossem necessariamente leituras ruins, mas não eram algo que eu quisesse ler no momento. E quando se trabalha literalmente lendo livros, insistir numa leitura que não te desperta nada além de sono parece um pouco lunático. </p><p style="text-align: justify;">Sempre insisti em leituras, mesmo naquelas de que eu não estava gostando, porque acredito que uma boa história às vezes exige perseverança. Mas perseverar <i>para quê</i> foi realmente uma grande questão em 2021. Eu leio porque gosto ou para mostrar que li? Como pessoa que escreve e que possui lugares na internet onde publica, os limites entre uma coisa e outra podem ser tênues. Mas não quero ler por ler. Não quero insistir em leituras que me dão vontade de atirar o livro na parede só porque eu tenho que <i>mostrar</i> que li, porque supostamente preciso ter uma <i>opinião</i> a respeito do livro. Minha opinião sobre os tais livros abandonados é: nhé. Talvez sejam livros bons e o momento não fosse propício. É possível que sejam os favoritos de muita gente. Porém, para mim, eles serão aqueles que abandonei - ao menos por agora. E tá tudo bem. </p><p style="text-align: justify;">Se abandonei muitas leituras, também mergulhei em outras que não esperava ler. Não é meu costume fazer listas rígidas de livros para ler. Embora tenha um clube do livro que medio e cuja curadoria faço, para além dele a minha maneira de escolher o próximo livro é simplesmente olhar para a estante e "sentir" qual será a próxima leitura. É uma coisa meio mística até. Acredito firmemente que os livros nos chamam quando precisamos de suas histórias. E aparentemente o que eu precisava em 2021 era ler romances românticos históricos. </p><p style="text-align: justify;">Qualquer pessoa que já leu textos meus nesses quase 12 (!!!!!) anos de blog sabe que eu sempre tive pavor de histórias de amor. São irreais, melodramáticas, irritantes, com pessoas perfeitas e burras, que largam tudo para ficar com a criatura amada. Não é à toa que o meu livro preferido é <a href="https://www.queridoclassico.com/2021/07/o-morro-dos-ventos-uivantes-nao-e-uma-historia-de-amor.html" target="_blank"><i style="font-weight: bold;">O Morro dos Ventos Uivantes</i>, praticamente a antítese da história de amor</a>. Qual não foi a surpresa, então, quando comecei a ler um livro da Tessa Dare ironicamente e não apenas gostei como li outros 14 dela? Sim, eu li 15 livros da Tessa Dare. E alguns da Julia Quinn (embora desses não tenha gostado muito). Foi um ano bem atípico de leituras, certamente. Mas os romances da Tessa Dare não são melosos ou com personagens burras. Suas mocinhas são mulheres reais - no contexto da Inglaterra de 1815, a mesma de Jane Austen, por sinal - que vão atrás do que querem, desafiando convenções. Seus heróis são homens que revelam mais do que um rosto bonito e uma posição ascendente na sociedade. As histórias são muito bem desenvolvidas e encantadoras. É difícil não gostar. (E aqui admito publicamente que talvez o fato de ter lido romances do Nicholas Sparks e aquele horror de Cinquenta Tons de Cinza na adolescência tenha criado uma visão distorcida de romances na minha cabeça. Acho que gosto, sim, do gênero. E que bom.) </p><p style="text-align: justify;">Para além disso, li diversos clássicos. Alguns pelo <a href="https://www.queridoclassico.com/p/clube-do-livro-querido-classico.html" target="_blank">clube do livro</a>, outros apenas porque sim. Foi divertido revisitar algumas histórias e conhecer pela primeira vez outras. O legal dos clássicos é que, por mais conhecidos que sejam, sempre parece haver uma história nova. E às vezes histórias tão conhecidas na cultura pop - como <i style="font-weight: bold;">Frankenstein</i> - revelam algo surpreendente ao serem realmente lidas com atenção. É meio mágico. </p><p style="text-align: justify;">Okay, vamos para a lista do que foi lido em 2021. Tenho quase certeza de que estão faltando alguns títulos, mas foram estes que eu anotei. 53 livros, gostei de praticamente todos, amei muitos. </p><h2 style="text-align: center;">Lidos em 2021</h2><p style="text-align: center;"><i><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/01/os-cem-anos-de-o-misterioso-caso-de.html" target="_blank">O misterioso caso de Styles</a></i> • <i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/01/o-grande-gatsby-de-f-scott-fitzgerald.html" target="_blank">O grande Gatsby</a></i> • <i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/01/e-assim-que-se-perde-a-guerra-do-tempo.html" target="_blank">É assim que se perde a guerra do tempo</a></i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/02/querido-podcast-09-mrs-dalloway.html" target="_blank">Mrs. Dalloway</a></i> • <i>Frankenstein</i> • <i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/03/relendo-meu-livro-preferido-na-pandemia-a-insustentavel-lelveza-do-ser.html" target="_blank">A insustentável leveza do ser</a></i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/03/ricardo-iii-a-propaganda-tudor-de-shakespeare.html" target="_blank">Ricardo III</a></i> • <i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/03/com-sangue-de-stephen-king.html" target="_blank">Com sangue</a></i> • <i>Agnes Grey</i> • <i>Diga sim ao marquês</i> • <i>Romance com o duque</i> • <i>A noiva do capitão</i> • <i>Como se livrar de um escândalo</i> • <i>Meu corpo, minha casa</i> • <i>Uma semana para se perder</i> • <i>Vikram and the vampire</i> • <i>Uma noite para se entregar</i> • <i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/07/sombra-ossos-e-bons-viloes.html" target="_blank">Sombra e ossos</a></i> • <i>What are you going through</i> • <i>The survivors</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/05/mulheres-extraordinarias-mary-wollstonecraft-mary-shelley.html" target="_blank">Mulheres extraordinárias</a></i> • <i>Lugar sombrio</i> • <i>Um teto todo seu</i> • <i>Sol e tormenta</i> • <i>Ruína e ascensão</i> • <i>A dama da meia-noite</i> • <i>A bela e o ferreiro</i> • <i>O presente inesperado</i> • <i>Uma chance para o amor</i> • <i>A jovem e a noite</i> • <i>Uma duquesa qualquer</i> • <i>Um casamento conveniente</i> • <i>Um amor conveniente</i> • <i>Writers & lovers</i> • <i>Ninguém vira adulto de verdade</i> • <i>Uma bolota molenga e feliz</i> • <i>A louca dos gatos</i> • <i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/09/uma-aposta-irresistivel-de-tessa-dare.html" target="_blank">Uma aposta irresistível</a></i> • <i>O rei gélido</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/10/damien-karras-o-exorcista.html" target="_blank">O exorcista</a></i> • <i>A profecia</i> • <i>Noivas em fuga</i> • <i>Esplêndida</i> • <i>O fantasma inexperiente</i> • <i>The lost apothecary</i> • <i>Diga sim ao marquês</i> • <i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/11/a-ascensao-da-rainha-rebecca-ross.html" target="_blank">A ascensão da rainha</a></i> • <i>The queen's resistance</i> • <i>Brilhante</i> • <i><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/11/o-homem-da-forca-shirley-jackson.html" target="_blank">O homem da forca</a></i> • <i>O castelo de Otranto</i> • <i>Buddha's crystal and other fairy stories</i> • <i>O Natal dos fantasmas</i></p><h2 style="text-align: center;">Maior livro</h2><p style="text-align: center;"><i>Mulheres extraordinárias</i>, de Charlotte Gordon, com 624 páginas. </p><h2 style="text-align: center;">Menor livro</h2><p style="text-align: center;"><i>O fantasma inexperiente</i>, de H. G. Wells, com 79 páginas. </p><h2 style="text-align: center;">Melhores do ano</h2><p style="text-align: justify;"></p><div style="text-align: center;"><i><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgnTtoI7D_a7o8vX9h8gKb58qYl_Pb0iTr8bxjMQLot6KU3Zl3HtTr3Nt64iDhYmOA0oTlLqB_0TGDGAzsEcfMZmEV9Td_8s0TWmr2IgN-UQcbFEbQHtf5bSTZz9GoknYUEm5FHhRc4EnE5F8VAWB_0ltDxq0PpzaE_Xw_4UIkSi3dvNIuLJg61P76A=s1300" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="1300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgnTtoI7D_a7o8vX9h8gKb58qYl_Pb0iTr8bxjMQLot6KU3Zl3HtTr3Nt64iDhYmOA0oTlLqB_0TGDGAzsEcfMZmEV9Td_8s0TWmr2IgN-UQcbFEbQHtf5bSTZz9GoknYUEm5FHhRc4EnE5F8VAWB_0ltDxq0PpzaE_Xw_4UIkSi3dvNIuLJg61P76A=s16000" /></a></div><b><br /></b></i></div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/02/querido-podcast-09-mrs-dalloway.html" target="_blank">Mrs. Dalloway</a></b></i>, de Virginia Woolf</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/11/a-ascensao-da-rainha-rebecca-ross.html" target="_blank">A ascensão da rainha</a></b></i>, de Rebecca Ross</div><div style="text-align: center;"><i><b>Diga sim ao marquês</b></i>, de Tessa Dare</div><div style="text-align: center;"><i><b>O Natal dos fantasmas</b></i>, de vários autores</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/05/mulheres-extraordinarias-mary-wollstonecraft-mary-shelley.html" target="_blank">Mulheres extraordinárias</a></b></i>, de Charlotte Gordon</div><div style="text-align: center;"><i><b>The lost apothecary</b></i>, de Sarah Penner</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/11/o-homem-da-forca-shirley-jackson.html" target="_blank">O homem da forca</a></b></i>, de Shirley Jackson</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/03/ricardo-iii-a-propaganda-tudor-de-shakespeare.html" target="_blank">Ricardo III</a></b></i>, de William Shakespeare</div><div style="text-align: center;"><i><b>Uma semana para se perder</b></i>, de Tessa Dare</div><div style="text-align: center;"><i><b>Writers & lovers</b></i>, de Lily King</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhexB71A1ZseA3oLVCx9t2N3UfvnWbzj0H-JI9tytL8dGG9aBd_qej0bbQzWTzXXo0dmm0Rz9uzfTa5hQgZDKU9SnnkkOaZa7b0zw7Fh9t429IvlAtwCosPcx1az7GlvP-uU8YKO-MVtaCu4A1caTVAnRILDVrphNtOi1lgLF6xpF9iqg8ooObOkLOE=s1300" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="1300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhexB71A1ZseA3oLVCx9t2N3UfvnWbzj0H-JI9tytL8dGG9aBd_qej0bbQzWTzXXo0dmm0Rz9uzfTa5hQgZDKU9SnnkkOaZa7b0zw7Fh9t429IvlAtwCosPcx1az7GlvP-uU8YKO-MVtaCu4A1caTVAnRILDVrphNtOi1lgLF6xpF9iqg8ooObOkLOE=s16000" /></a></div><p></p><h2 style="text-align: center;">Melhores releituras</h2><p style="text-align: justify;"></p><div style="text-align: center;"><i><b>Frankenstein</b></i>, de Mary Shelley</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/03/relendo-meu-livro-preferido-na-pandemia-a-insustentavel-lelveza-do-ser.html" target="_blank">A insustentável leveza do ser</a></b></i>, de Milan Kundera</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/01/o-grande-gatsby-de-f-scott-fitzgerald.html" target="_blank">O grande Gatsby</a></b></i>, de F. Scott Fitzgerald</div><div style="text-align: center;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2021/10/damien-karras-o-exorcista.html" target="_blank">O exorcista</a></b></i>, de William Peter Blatty</div><p></p><h2 style="text-align: center;">Quote preferido</h2><p style="text-align: center;"><i>“Não escrevo porque penso que tenho algo a dizer. Escrevo porque, caso contrário, tudo parece ainda pior.”</i></p><p style="text-align: center;"><span style="font-size: x-small;">(LILY KING, Writers & lovers)</span></p><p style="text-align: center;">Me acompanhe no <a href="https://www.goodreads.com/user/show/57588640-mia" target="_blank">Goodreads</a> e no <a href="https://www.skoob.com.br/usuario/391432" target="_blank">Skoob</a> ♥</p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-3401405651809062202021-11-23T10:58:00.002-03:002021-11-23T10:58:09.535-03:00O homem da forca, de Shirley Jackson <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg4M0-ESheoS00qUI4Lg5FfMeSDprBHv9x26MC72S3yuANO8GenAVp3FF_zw7Z3eOxGF7BCwfk83up_35wjuCkDVSmXGYo1bvYAEQXhcjMcs0tPOMjRcafk7qVSdVMtKI-8L3l4C8aKz_4/s836/o-homem-da-forca-shirley-jackson.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="836" data-original-width="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg4M0-ESheoS00qUI4Lg5FfMeSDprBHv9x26MC72S3yuANO8GenAVp3FF_zw7Z3eOxGF7BCwfk83up_35wjuCkDVSmXGYo1bvYAEQXhcjMcs0tPOMjRcafk7qVSdVMtKI-8L3l4C8aKz_4/s16000/o-homem-da-forca-shirley-jackson.jpg" /></a></div><div style="text-align: center;"><span style="font-size: x-small;"><i>Atalanta</i>, Will Barnet (1974)</span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Penso com certa frequência no início de <i style="font-weight: bold;">A redoma de vidro</i>. <i>"Era um verão estranho, sufocante, o verão em que eletrocutaram os Rosenberg, e eu não sabia o que estava fazendo em Nova York."</i> Acho esse um dos melhores inícios da literatura porque já nos estabelece o tom da narrativa. Era verão. Estava muito calor - mas a palavra "sufocante" possui duplo sentido; pode ser sobre o calor, mas também sobre a sensação psicológica daquele momento, daquele lugar. Acredito piamente que há livros que são feitos para se ler no calor. O da Sylvia Plath é um deles. <i style="font-weight: bold;">O homem da forca</i>, da Shirley Jackson, é outro. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Curiosamente, a história se passa durante o inverno, e há muitas menções ao uso de casacos e capas de chuva. Mas a atmosfera é de um calor sufocante dentro da cabeça da protagonista, que remonta ao livro da Plath. Já foi dito várias vezes - e utilizado como recurso literário, inclusive em <i style="font-weight: bold;">O estrangeiro</i>, do Camus - que o calor faz coisas estranhas com certas pessoas. Bagunça seus pensamentos. Se alguém tem algo de insanidade, o calor parece aumentar as questões psicológicas. Foi uma boa decisão, portanto, ler <i style="font-weight: bold;">O homem da forca</i> durante uma tarde terrivelmente quente, de mais de 30ºC. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sinto que esse livro teria feito mais sentido se eu o tivesse lido durante a faculdade. Assim como Natalie, a personagem principal, eu também estava tentando lidar com um trauma jogado lá no fundo da mente enquanto a ideia de ser uma pessoa de verdade me deixava nervosa. Crescer como pessoa pode ser assustador quando se é mulher e se percebe que não há muito para onde correr - todos os homens são inimigos em potencial, mesmo os mais inteligentes, aqueles que deveríamos admirar, e todos os futuros parecem apontar para um mundo de homens onde as mulheres são transformadas de estudantes interessantes em esposas tristes. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não ajuda muito quando se é solitária, quando as pessoas percebem a sua estranheza. Natalie não tem amigas - as outras meninas da faculdade são terríveis, têm um comportamento grupal e não a reconhecem como sua semelhante (ou seja, igualzinho à vida real). Além disso, é muito difícil saber quando alguém se aproxima se aquela pessoa está ali porque quer ser sua amiga ou se apenas gosta de lhe manter por perto para tirar sarro de você. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">São experiências de solidão e trauma que colocam Natalie não à beira de um ataque de nervos, não próxima a ter um colapso nervoso, mas já completamente perdida em si mesma. Seu pai, um escritor narcisista e misógino, corrige até mesmo a forma como ela escreve cartas informais para casa. Sua mãe chora o tempo todo, lamentando tudo e nada ao mesmo tempo. O irmão parece ser o único da família a desfrutar de certa liberdade. E Natalie, com a voz do pai constantemente ecoando em sua cabeça, a corrigindo, dizendo-lhe que ela tem potencial, mas ainda é boba, tenta calar a outra voz, aquela que lhe lembra do trauma acontecido, do abuso que aconteceu em sua própria casa, no pátio, por um convidado de seu pai, que nem notou o que acontecera à própria filha, pois estava entretido com o braço na cintura de uma jovem bonita e bem mais nova do que ele. Não é de se espantar, portanto, que Natalie dissocie tanto. Ela cria narradores para si mesma, personagens que interpreta, se imagina vivendo outras vidas, outras realidades, e cai nessa dissociação não sabendo lidar com a faculdade e as colegas e todo o resto. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É uma existência nervosa e solitária. O livro, publicado em 1951, ecoa tantas outras obras de mulheres da época, que também possuem esse ritmo inquietante, esse diálogo com alguém, <i>qualquer um</i>, sobre esses nadas que acontecem na vida de uma jovem - nadas que modificam tudo e corroem por dentro. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div style="text-align: center;"><span style="font-size: x-large;"><i><b>“Não vou pensar nisso, não importa”, disse a si mesma, e sua mente repetiu, como uma idiota, Não importa, não importa, não importa, não importa, até que, desesperada, ela disse alto, “Não me lembro, nada aconteceu, nada do que eu me lembro aconteceu”.</b></i></span></div><div><br /></div><div style="text-align: center;"><b><i>Exemplar recebido em parceria pela Companhia das Letras. Edição da Alfaguara, com tradução de Débora Landsberg.</i></b></div></div>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-51850218722696324942021-11-21T10:03:00.002-03:002021-11-21T10:03:44.447-03:00A ascensão da rainha, de Rebecca Ross <p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQm5bTQCQox40WAsFLvjxqCAUOUll8bLbgZOVPvNogfLz9BWHi0jrk_GxyBU_MLrYcUrGEzCJysCZYBoLn4ZKamI4bd-Jq1rir1kWjdfGB27QC98FI6Jpz1qo46YTNOUxcM6TL8gb8RnY/s1528/a-ascensao-da-rainha-livro-rebecca-ross.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1019" data-original-width="1528" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQm5bTQCQox40WAsFLvjxqCAUOUll8bLbgZOVPvNogfLz9BWHi0jrk_GxyBU_MLrYcUrGEzCJysCZYBoLn4ZKamI4bd-Jq1rir1kWjdfGB27QC98FI6Jpz1qo46YTNOUxcM6TL8gb8RnY/s16000/a-ascensao-da-rainha-livro-rebecca-ross.png" /></a></div><p></p><p style="text-align: justify;"><i style="font-weight: bold;">A ascensão da rainha</i> (<i>The Queen's Rising</i>, traduzido por Regiane Winarski) tem 378 páginas, que li em dois dias. Teria sido menos se não tivesse de dormir. O livro de Rebecca Ross me fez adentrar num mundo maravilhoso que reúne muito do que eu gosto: ficção histórica, bons protagonistas, fantasia, um romance interessante e referências sobre a Escócia de 1560. </p><p style="text-align: left;"><span style="font-size: x-large;"><i><b>Enredo </b></i></span></p><p style="text-align: justify;">No reino de Valenia, as Casas do Conhecimento eram lugares onde apenas jovens ricas iam estudar. A Casa Magnalia era uma das melhores de Valenia, e todas as cinco alunas já estavam lá - mas uma nova candidata chegou. Embora a Viúva, que coordenava Magnalia, aceitasse apenas cinco alunas por vez, Brienna era uma exceção. Criada em um orfanato, seu avô a havia levado até lá para que ela estudasse uma paixão e também se refugiasse de uma ameaça que ela não sabia qual era. O que sabia era que sua vida tinha um grande vazio: sem mãe desde pequena, com um avô distante e sem saber quem era seu pai, exceto pelo fato de que ele era de Maevana, reino vizinho, Brienna teve uma infância estranha. Aos dez anos, estava na Casa Magnalia, mesmo sem ter nenhuma aptidão para as paixões. </p><p style="text-align: justify;">Arte, música, teatro, sagacidade e conhecimento - as cinco paixões ensinadas em Magnalia preparam suas ardens para, ao décimo sétimo ano de ensino, serem escolhidas por seus futuros patronos, pessoas que precisam de uma arden em seu trabalho. </p><p style="text-align: justify;">Brienna passou os sete anos em Magnalia estudando todas as paixões. Como não tinha aptidão inata para nenhuma, pulou de uma para a outra. No primeiro, foi a arte. Depois, a música, o teatro e a sagacidade. Apenas no quarto ano lá , Brienna procurou o Mestre Cartier, arial de conhecimento, para que ele pudesse ensiná-la. O pedido era quase impossível: ensinar a paixão do conhecimento em apenas três anos. Mas o Mestre Cartier aceitou Brienna como aluna, e agora, três anos depois, ela estava às vésperas de seu solstício de verão, onde seria apresentada a possíveis patronos e receberia seu manto da paixão. </p><p style="text-align: justify;">Mas as coisas não saem como o esperado e Brienna encontra-se num caminho diferente daquele que lhe foi destinado. A partir daí, nossa heroína descobrirá sua herança Maevana e partirá em uma jornada para colocar uma rainha novamente no trono vizinho. </p><p style="text-align: left;"><span><i><b><span style="font-size: x-large;">Sentimentos!!!!!</span><span style="font-size: large;"> </span></b></i></span></p><p style="text-align: justify;">Faz quase uma semana que terminei de ler esse livro e ainda estou pensando nele. Já li outros dois livros depois (um deles, a continuação desse, que é uma duologia, ainda não traduzido para o Brasil, <i>The Queen's Resistance</i>, cujas 500 páginas em inglês li em um dia - eu nem sabia que ainda era capaz disso haha), mas sigo retornando a esse, a mente querendo adentrar nos reinos de Valenia e Maevana, conhecer Brienna e Cartier, participar daquele mundo tão repleto de tradições e de uma história intrigante. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEic5NOgwAWLrxwhmc-23NETxL6eSw0aRjDaXJH7NTN917XBjyiClKIQsNEin1AzVMSE_Jxg3AZccX8YAtG8ZgeA4Hej6x9l1F-c4EMcnZ0VJxFBWM44U883aUvETyrOpws_S0gjBnyvaFc/s895/a-ascensao-da-rainha-rebeccaross.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="895" data-original-width="859" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEic5NOgwAWLrxwhmc-23NETxL6eSw0aRjDaXJH7NTN917XBjyiClKIQsNEin1AzVMSE_Jxg3AZccX8YAtG8ZgeA4Hej6x9l1F-c4EMcnZ0VJxFBWM44U883aUvETyrOpws_S0gjBnyvaFc/s16000/a-ascensao-da-rainha-rebeccaross.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">E não se enganem: <i style="font-weight: bold;">A ascensão da rainha</i> é muito sobre história. Claro, quem não entender nada sobre a França e a Escócia do século XVI não vai se ver perdido, embora as referências a esses lugares nesse período sejam bem fortes. Mas não conhecer não atrapalhará sua leitura. O que digo quando me refiro a ser um livro sobre história é que justamente por Brienna ser uma arden do conhecimento, ensinada por Mestre Cartier, um arial do conhecimento, esse estudo é central na trama. Embora depois ela se torne mais política, com questões sobre estratégia de guerra e cenas de batalha, o papel da história e da importância do historiador é bem destacado - afinal, quem não conhece seu passado mal sabe do seu presente. </p><p style="text-align: justify;">Não vou dar <i>spoilers</i>, portanto não posso falar muito sobre as personagens, mas aqui fica a menção de que Cartier deve ser o homem mais apaixonante da ficção contemporânea. Apenas. A relação dele com Brianna pode parecer estranha no começo, mas logo torna-se muito natural e entendemos seus desdobramentos. De certa maneira, me lembrou bastante a dinâmica desenvolvida por Jane Austen em <i style="font-weight: bold;">Emma</i> entre a protagonista, Emma, e Mr. Knightley. </p><p style="text-align: justify;">E embora Brienna seja a protagonista (e Cartier tenha conquistado um lugar especial no meu coração, ainda que não tenha tanta presença no primeiro livro), as outras personagens são tão incríveis e bem desenvolvidas quanto. Jourdain, Luc, Isolde, as amigas de Brienna, as outras arials de Magnalia - especialmente Merei, arial de música e melhor amiga da protagonista. </p><p style="text-align: justify;">Basicamente toda história de fantasia é derivada de outras. (Aliás, eu diria que praticamente tudo é derivado de outra coisa; essa ideia de que algo é totalmente único, inovador, sem referência ao passado, é simplesmente ridícula, mas prossigo.) Claro que <i style="font-weight: bold;">A ascensão da rainha</i> bebeu de diversas fontes, e não será difícil para os leitores do gênero encontrar as obras que inspiraram a história. Mas jamais diria que isso a torna cansativa ou repetitiva: eu certamente não fazia ideia do que iria acontecer e levei excelentes surpresas durante a leitura. </p><p style="text-align: justify;">Se eu tivesse de escolher um livro no qual entrar para viver a história, esse seria certamente <i style="font-weight: bold;">A ascensão da rainha</i>. "Apaixonante" é pouco para descrevê-lo. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1bocIS2xuW85R2PrNLhp9Ymcrqz7CiYNiEd2WIdlZL90ncS25gli_ClcESO0cLDH4qKPlUCR2sMaU33azsLJ8rcobkNOyvQT1-8Q2IlEl4XWjVrUya85tBsy8YqPo-nS3rbxj1QMAcYQ/s700/a-ascensao-da-rainha-rebecca-ross.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="700" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1bocIS2xuW85R2PrNLhp9Ymcrqz7CiYNiEd2WIdlZL90ncS25gli_ClcESO0cLDH4qKPlUCR2sMaU33azsLJ8rcobkNOyvQT1-8Q2IlEl4XWjVrUya85tBsy8YqPo-nS3rbxj1QMAcYQ/s16000/a-ascensao-da-rainha-rebecca-ross.png" /></a></div>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-70389693070556291922021-09-11T08:41:00.002-03:002022-06-11T13:55:16.406-03:00Ela não está apenas triste: como a ficção tem retratado a depressão feminina <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihoAlADGhTkeCjBYxhBJFCAALt9Y22vhyqtprPgG7aTEFQEl8tHKbAFM8Vrwyw9gPuEesG7500tldwZ5gPk6sklJeAyIZ9RIGGpnxib-UaO_oLeNLPtrpGojWflg6raUlyvar28pAZm_pY0SBryucJPkKSyDv2KwnECwJvAHGC0u8TVWHw_9c21_Se/s1800/depressao-feminina-na-ficcaoo.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihoAlADGhTkeCjBYxhBJFCAALt9Y22vhyqtprPgG7aTEFQEl8tHKbAFM8Vrwyw9gPuEesG7500tldwZ5gPk6sklJeAyIZ9RIGGpnxib-UaO_oLeNLPtrpGojWflg6raUlyvar28pAZm_pY0SBryucJPkKSyDv2KwnECwJvAHGC0u8TVWHw_9c21_Se/s16000/depressao-feminina-na-ficcaoo.png" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">
Eu sou uma Mulher Que Escreve e também uma ávida consumidora de cultura pop. A arte é a minha forma preferida de ignorar a vida e, desde que comecei a escrever sobre produções culturais, minha mente começou a estabelecer padrões para tudo o que eu vejo e percebo com meus sentimentos. Como mulher e feminista, volto meu olhar para obras feitas por mulheres. Algumas dialogam comigo, outras não, mas o resultado é sempre estimulante: há muitas coisas sendo feitas que nos retratam com vivacidade e realidade. O ideal romântico da mocinha salva pelo príncipe caiu faz um bom tempo, assim como o estereótipo da mulher triste que se suicida de forma poética, tomando pílulas numa banheira. Não é assim que costumam acontecer nossas mortes, tampouco nossa depressão. </div>
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No ano passado, a depressão se tornou a doença mais incapacitante do mundo, de acordo com a OMS. Essa frase, que já virou senso comum em redes sociais e noticiários durante o Setembro Amarelo, pode ter seu sentido despercebido pela constante repetição da manchete em todos os lugares. Mas, quer se preste a devida atenção a ela ou não, o resultado é o mesmo: estamos cada vez mais doentes, incapacitados e tristes. Talvez por isso a ficção tenha finalmente acertado o tom das histórias que produz com personagens depressivas — ou talvez esse seja o resultado da tomada de poder narrativo que mulheres conquistaram nos últimos vinte anos. Seja lá como for, o fato é que agora não somos mais retratadas como bonitas e tristes. Nossos problemas psicológicos possuem nuances, complexidades e vozes que xingam, gritam ou emudecem, dependendo da personalidade e situações enfrentadas. </div>
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Notei isso especialmente em três obras ficcionais lançadas no Brasil recentemente. Apesar de a narrativa da mulher depressiva com toques de vida real estar amplamente difundida atualmente, foram as produções que me chamaram atenção pela crueza e verdade nelas descritas: <i><b><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/11/meu-ano-de-descanso-e-relaxamento.html" target="_blank">Meu Ano de Descanso e Relaxamento</a></b></i>, <i><b>Fleabag</b></i> e <i><b><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2021/02/crazy-ex-girlfriend-e-o-final-feliz-de-rebecca-bunch.html" target="_blank">Crazy Ex-Girlfriend</a></b></i>. As personagens criadas nessas obras poderiam ser colegas de faculdade, amigas ou até mesmo eu e você, de tão verossímeis que foram construídas. Nelas, encontrei um pouco de mim mesma e das mulheres que conheço e também lutam com transtornos psicológicos. Consumir esses produtos me fez entender um pouco mais de mim mesma e da nossa geração de mulheres que tentam ser estáveis, embora possuam problemas sérios que frequentemente são ignorados pela sociedade. É um alívio encontrar narrativas que conversem comigo e com a minha geração tão abertamente, mas infelizmente nem sempre foi assim. </div>
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Um famoso arco narrativo utilizado à exaustão até pouco tempo pode ser encontrado em <i><b>Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças</b></i> (2004). O diálogo acontece porque, para além de sermos feitos de sentimentos e já termos vivenciado, em maior ou menor grau, pelo menos uma decepção amorosa que nos deixou arrasados, a ideia de poder pular a parte da tristeza infinita que ocorre no término de um relacionamento é algo atraente. Existir num mundo onde existe a possibilidade de não sentir tristeza ou a dor do abandono parece um presente. Clementine (Kate Winslet) faz isso. Ela decide apagar suas memórias para não lembrar de toda a dor causada pelo rompimento com o parceiro, Joel (Jim Carrey). Apesar de ser um filme muito bom, ele não é focado na dor que fez com que Clementine tomasse uma atitude tão drástica. Ela, assim como tantas outras personagens do cinema, não vai além da gama de sentimentos que causa em um homem. Sua complexidade é jogada no lixo, junto de todas as cores de cabelo e indícios de que ela provavelmente sofreu com depressão durante toda a história dos dois. Infelizmente, não podemos ter um diálogo com Clementine e jamais entenderemos os motivos que a levaram a apagar as lembranças que tinha de Joel. Apesar disso, o filme funciona. A história é interessante, o método de destruição da memória que se tem de um relacionamento é algo desejável por muitos e podemos entender, em partes, por que ela decide se submeter a ele. Contudo, para haver uma verdadeira representação narrativa da experiência feminina, é preciso ter mulheres diretoras e roteiristas, e o filme é dirigido e escrito por homens, com o foco todo nos sentimentos de Joel. Mas no ano em que o filme foi lançado, ainda não era comum haver um diálogo verdadeiro sobre a depressão feminina nas telas. Felizmente isso mudou. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLCv6b2XSDkmCfjr-Ng_TQZ3e1JuXrwez3tfuWvnEkRddCXd8oXmdl-gBuiu1quHV93OsowIgHNUdekmVPrEOBVAZ7fZccEO0tNTvKesZUr_LxboefnXSKuMKfJ1EmRmnM-x22uyv8cWI/s1394/brilho-eterno-de-uma-mente-sem-lembrancas-clementine.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="751" data-original-width="1394" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLCv6b2XSDkmCfjr-Ng_TQZ3e1JuXrwez3tfuWvnEkRddCXd8oXmdl-gBuiu1quHV93OsowIgHNUdekmVPrEOBVAZ7fZccEO0tNTvKesZUr_LxboefnXSKuMKfJ1EmRmnM-x22uyv8cWI/s16000/brilho-eterno-de-uma-mente-sem-lembrancas-clementine.png" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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No final de 2018, ao revirar mais uma vez sites estrangeiros em busca das novidades do mercado editorial, me deparei com um lançamento que me chamou a atenção primeiramente pela capa: nela se pode ver a pintura de uma jovem mulher, em trajes georgianos, sentada na beira da cama com uma expressão de pura estafa. Acima da cena insólita, em letras cor-de-rosa pink, o título: <i><b>My Year of Rest and Relaxation</b></i>. Tinha de ler a sinopse, afinal de contas. E lá estava o que seria a história de uma jovem adulta que, após simplesmente não aguentar mais sua realidade, resolve tirar um ano para dormir, tomando diversos tipos de pílulas contra a insônia, ansiedade e depressão. No momento em que li aquilo, sabia que era exatamente o que eu queria. Eu também queria um ano de descanso e relaxamento. Mas estava longe de consegui-lo. </div>
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Como a vida imita a ficção, mas possui seus limites, me concentrei em fazer o melhor possível diante de um país sendo cada vez mais arruinado, de uma situação política que só pode ser descrita como desesperadora, da incerteza do amanhã e das pendências acadêmicas caindo sobre a minha cabeça. E o melhor, nessa situação, pode bem variar de pessoa para pessoa. Para mim, entretanto, ele é todo focado na arte e na representação do tempo que vivenciamos em todas as formas artísticas, sejam elas séries, filmes ou até mesmo o livro sobre uma jovem que não aguenta mais a vida e decide tirar um recesso dormindo por um ano. </div>
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Em 2019, o livro finalmente chegou ao Brasil, através da editora Todavia. A obra mais famosa de Otessa Moshfegh até agora não chamou apenas a minha atenção, mas também a de um mercado editorial quebrado, que seleciona muito bem os livros a serem publicados, já que não estamos em condições de esbanjar dinheiro apostando em histórias que não possuem apelo a um público expressivo, assim como de diversas mulheres do mundo literário da internet, que leram, recomendaram e falaram de suas agruras a partir da experiência de leitura de <i><b>Meu Ano de Descanso e Relaxamento</b></i>. Um livro sobre uma mulher que dorme quase o tempo todo não deveria render muita coisa, mas rendeu. Isso porque, se há algo de mágico na ficção é o fato de conseguirmos estabelecer relações de compreensão e aceitação com nosso inconsciente. Ler a história de uma jovem que não aguenta mais a situação pela qual está passando e prefere tomar diversos remédios, embora os efeitos colaterais não sejam dos melhores, para dormir a se manter acordada, talvez procurando por uma terapia séria, é algo que dialoga conosco no momento em que estamos vivendo coletivamente. Era 2019, afinal de contas - e não é possível dizer que as coisas tenham melhorado de lá para cá. Como bem disse Eliane Brum, estamos <a href="https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/opinion/1564661044_448590.html" target="_blank">doentes de Brasil</a>. A doença, na maioria das vezes, é a depressão. E a ficção nos ajuda a estabelecer pontes para compreender melhor nossa forma de lidar com ela atualmente. </div>
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Uma forma bastante comum de lidar com a depressão é nos jogando em abusos que nos fazem sentir melhor. E a ficção contemporânea tem retratado isso em diversas produções. Em <i><b>Meu Ano de Descanso e Relaxamento</b></i>, a protagonista abusa do sono como um poder curativo, acreditando que, ao se alienar completamente do mundo que a cerca — trabalho, amiga, ex-namorado —, conseguirá finalmente curar seu interior, tão desgastado e vazio após a morte do pai e o suicídio da mãe. Ao invés de procurar ajuda terapêutica, ela decide que a melhor opção é simplesmente se jogar naquilo que mais ama: dormir. O sono, para ela, além de restaurador, também era o único vínculo que possuía com a mãe. Em suas memórias, os momentos mais tranquilos e afetuosos que passara ao lado dela eram justamente aqueles em que dormiam juntas, tirando longas tardes de sono nos lençóis brancos de uma casa rica em Nova York. </div>
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Se deixar sucumbir ao excesso do resgate de uma memória feliz, tentando recriar o passado para consertar os danos da depressão, é muito comum. Porém, a maioria de nós não possui os recursos da narradora do livro, que é riquíssima e pode se dar ao luxo de dormir por um ano inteiro sem se preocupar com contas a pagar. É um sonho, especialmente nos dias de hoje, se deixar levar pelo sono e só acordar quando a pandemia tiver acabado, a situação política se resolver, quando os problemas familiares estiverem longe e quando o emocional estiver curado. Quem não desejou estar dormindo em 2021? </div>
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Eu desejei. Por isso, o livro conversou tanto comigo — motivo pelo qual, imagino, também tenha conversado com um público maior. Contudo, não sou a protagonista rica de uma história que se passa na Nova York do ano 2000, e não posso me dar a esse luxo. Então, assim como outras personagens femininas da ficção contemporânea, minha depressão precisa de outras válvulas de escape. Uso a escrita, a leitura de clássicos, o cinema de horror e as séries de vampiro para não encarar a vida e não pensar na depressão, que me deixa assustada e insone e me faz duvidar de minha capacidade. Felizmente, encontro consolo em obras como a de Moshfegh, que mostram uma faceta da doença até então não muito explorada pela cultura pop: o desesperado abuso de qualquer coisa para preencher o vazio que a depressão causa. </div>
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Se em <i><b>Meu Ano de Descanso e Relaxamento</b></i> temos uma protagonista que abusa do sono para preencher seu vazio, em <i><b>Fleabag</b></i> a protagonista possui uma relação abusiva com o sexo para fugir dos problemas da depressão. A série, que é um dos melhores retratos da mulher jovem-adulta na televisão dos últimos anos, mostra uma protagonista (Phoebe Waller-Bridge) lidando com a morte da melhor amiga, se sentindo responsável diariamente pelo ocorrido e prejudicando a si mesma enquanto se mete em um relacionamento e outro apenas para tentar sentir que pode ser amada apesar de perceber a si mesma como uma pessoa horrível. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6oTRw075GfRz1eV_9xfHP9nGZdp_ZPWAPhkgWAQpriov1x1tE7m1UIVB0FvVqCCDDUVCGp3jVEsAwt-bJOHTgCCPqMmhN0ycuA_jQpdyJq3xzLrpbEMmUIF3I8BChztVB3CC3mM6Eahw/s1280/fleabag-depressao.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="720" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6oTRw075GfRz1eV_9xfHP9nGZdp_ZPWAPhkgWAQpriov1x1tE7m1UIVB0FvVqCCDDUVCGp3jVEsAwt-bJOHTgCCPqMmhN0ycuA_jQpdyJq3xzLrpbEMmUIF3I8BChztVB3CC3mM6Eahw/s16000/fleabag-depressao.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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A depressão de Fleabag não a faz pegar num frasco de comprimidos e ser uma bela suicida, bem pelo contrário. A única cena que indica um potencial suicida nela é quando, num momento de entorpecimento pela dor, ela cogita se matar da mesma forma que a amiga, atravessando a rua descuidadamente, sendo atropelada de forma torpe e rápida. A quase tentativa de suicídio dela é ao mesmo tempo uma forma de punição e uma busca por se conectar com a amiga morta. É terrível e patético vê-la bamboleando de um lado a outro entre a família, que lhe despreza, o café que tenta administrar — sozinha, desde a morte da amiga —, e relacionamentos sem conexão emocional, em que se sente vazia e desesperada, procurando por algo que nem consegue admitir o que é. </div>
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Enquanto Fleabag não consegue admitir o que quer porque sua depressão não lhe permite tentar ser uma pessoa melhor para si mesma, Rebecca Bunch (Rachel Bloom) admite até demais. Ela sabe muito bem o que quer, e não tem pudor algum em ir atrás. Longe de ser vista como uma mulher triste, ela é efusiva, dinâmica, divertida e impulsiva. Ela também tem muita raiva, comete erros, não sabe lidar direito com as pessoas e não respeita a si mesma. O quadro dela é mais complicado porque, além da depressão, Rebecca possui Transtorno de Personalidade Limítrofe — ou seja, ela é <i>borderline</i>. Para ela, tudo é muito, e sua válvula de escape está nos relacionamentos. </div>
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Não é o sexo em si, não é nem ao menos o amor, mas saber que aquela pessoa faria tudo por ela, que a deseja. Colocar toda sua energia — de alegria, de frustração, de desejo — em uma pessoa a ajuda a desviar do vazio que a depressão lhe impõe. Nessa busca desenfreada por sentir algo para preencher o embotamento das crises depressivas aliadas ao exagero sentimental tipicamente <i>borderline</i>, Rebecca comete erros terríveis, magoa as pessoas à sua volta e chega até mesmo a transar com o pai do ex-namorado — o que resulta numa tentativa de suicídio muito bem representada: honesta, dolorosa e nada glamourosa. </div>
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O interessante nessa nova abordagem da ficção contemporânea para a depressão e transtornos mentais em mulheres é que não há uma romantização. Não há beleza em tomar quinze comprimidos para dormir e acordar três dias depois, percebendo que fez coisas e foi a lugares a que jamais iria acordada. Não é bonito transar com o pai do seu ex durante um surto e, em seguida, tentar se matar dentro de um avião, sem maquiagem, de cara lavada, com um monte de pílulas que não significam nada porque o que se quer não é morrer, é escapar daquela situação. Não é sensual usar o sexo como abuso para canalizar os sentimentos autodestrutivos da depressão enquanto se pensa no suicídio da melhor amiga e no que poderia ter sido mudado. Aquelas cenas de mulheres arrumadas, maquiadas e ricas se deixando cair lentamente numa cadeira com estofado de seda após ingerir um frasco inteiro de medicamento não estão mais sendo feitas na ficção. O que temos agora é uma escolha narrativa que mostra o quão terrível pode ser chegar ao fundo do poço e flertar com o suicídio — muitas vezes só em pensamento, com ações autossabotadoras; outras, chegando às vias de fato. Mas o que essas obras culturais mostram é que, para além de tentativas suicidas, existem outras alternativas agora na vida da mulher neuroatípica. Elas podem ter vidas para além da doença, relacionamentos, empregos e sonhos. E essa, talvez, seja a maior mudança da ficção contemporânea sobre mulheres depressivas. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjuTgTMdAOHT6HkrcPK3D2kz4tG0w70wyLJvVVXuZ2Lwoq_4KQIccMahKaojG1Y3Goj9H-ozF9_WcWy-xjV8drXGRsylMq5PHrPWlC0eMiSioKfXIkoTQxnOrW8BgkAWxiNQ9DMw4ikUi8/s1296/crazy-ex-girlfriend-depressao.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="730" data-original-width="1296" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjuTgTMdAOHT6HkrcPK3D2kz4tG0w70wyLJvVVXuZ2Lwoq_4KQIccMahKaojG1Y3Goj9H-ozF9_WcWy-xjV8drXGRsylMq5PHrPWlC0eMiSioKfXIkoTQxnOrW8BgkAWxiNQ9DMw4ikUi8/s16000/crazy-ex-girlfriend-depressao.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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As três únicas representações reais para a depressão feminina no terreno da literatura pré-2000 em que posso pensar estão em <i><b>A Redoma de Vidro</b></i>, de Sylvia Plath, <i><b>Prozac Nation</b></i>, de Elizabeth Wurtzel e <i><b>Garota, Interrompida</b></i>, de Susanna Kaysen (que, assim como <i><b>Crazy Ex-Girlfriend</b></i>, trata sobre o Transtorno de Personalidade Limítrofe, mas é comum que as pessoas <i>borderlines</i> possuam também depressão e/ou ansiedade). Essas histórias são contadas por mulheres que lidaram com questões de saúde mental e escreveram sobre suas experiências, uma em um romance ficcional, as outras em livros de memórias. Enquanto a Esther Greenwood de Sylvia Plath vai a festas e conhece pessoas, vivendo o verão de sua vida ao mesmo tempo em que se sente morrer por dentro, Susanna se percebe cada vez mais perdida na instituição em que é internada após uma tentativa de suicídio e Elizabeth fala abertamente de como foi terrível em determinadas situações e se sentia afundada na depressão, desejando a morte. As três mulheres possuem posturas diferentes, e é justamente esse o ponto: embora existam sintomas comuns, não há padrão de personalidade para a mulher depressiva. Ela não é apenas uma garota triste, ela é todo um mundo de coisas que a afetam de maneiras diferentes. Mas talvez só tenhamos acesso a essas narrativas próximas da realidade do que é ser uma mulher com depressão porque foram mulheres que as escreveram. Precisamos contar nossas histórias, e precisamos ouvir histórias contadas por mulheres que possuem transtornos psicológicos. </div>
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Nenhuma das protagonistas de <i><b>Meu Ano de Descanso</b></i>, <i><b>Fleabag</b></i> e <i><b>Crazy Ex-Girlfriend</b></i> é uma boa pessoa. Rebecca é terrível com todo mundo que não possa ajudá-la a realizar seus sonhos de ser amada — o que, comicamente, só faz com que as pessoas tenham dificuldades em amá-la. Fleabag é uma bagunça, com seus problemas financeiros, café irônico e humor sarcástico ao ponto de autocomiseração. A menina rica de <i><b>Meu Ano de Descanso e Relaxamento</b></i> é péssima, trata a única amiga como lixo e não consegue estabelecer relações com ninguém. Talvez esses comportamentos sejam consequência do que sofrem internamente, talvez elas sejam apenas desagradáveis, mas aí está o fascinante: uma mulher agradável e perfeita não é uma mulher real. Somos péssimas com algumas pessoas enquanto parecemos as melhores criaturas do mundo com outras. Sofremos de depressão, ansiedade, transtornos de personalidade e de humor. Muitas vezes não sabemos o que dizer, como agir ou o que fazer da vida. Mas ainda assim merecemos um retrato fiel de nossas depressões e momentos complicados, ainda que não pareça, a princípio, tão brilhante quanto ser a heroína perfeita que faz tudo certo sempre cujo único problema são as outras pessoas, terríveis e más, que atrapalham seus planos. Nós também podemos ser terríveis e más às vezes, contudo o importante é não focar em um estereótipo de gênero, e sim nos motivos que nos levam a ser terríveis e más — e que podem estar atrelados a transtornos psicológicos. Não somos apenas mulheres tristes. </div>
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Talvez, se <i><b>Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças</b></i> fosse filmado hoje em dia, veríamos o lado de Clementine da história. Veríamos também que ela não está apenas triste: ela tem depressão, o que não a faz menos divertida e complexa, mas pode lhe tirar a vontade de viver. </div>
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Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-85257200467840493362021-05-17T20:01:00.004-03:002021-05-17T20:02:11.129-03:00Não subestimem Martha Jones: o racismo em Doctor Who <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div style="text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSzkfEwlJlNavlajARbvtUGijxmijiswQE7KJsfEqzAL52NQCf_nyBqeGbOBhi_W_3EK72LWFPhPzf5VVwSkAPPYXjgp5KH7kIx_f_4fdzv7KXfDigZdnB-3w46SQWU_RRRObQIlPhr7g/s1600/martha-jones-doctor-who.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="530" data-original-width="1080" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSzkfEwlJlNavlajARbvtUGijxmijiswQE7KJsfEqzAL52NQCf_nyBqeGbOBhi_W_3EK72LWFPhPzf5VVwSkAPPYXjgp5KH7kIx_f_4fdzv7KXfDigZdnB-3w46SQWU_RRRObQIlPhr7g/s1600/martha-jones-doctor-who.png" /></a></div><div style="text-align: justify;">Durante os mais de cinquenta anos da série, <i><b>Doctor Who</b></i> nos apresentou personagens memoráveis. Tanto na série clássica quanto no <i>New Who</i>, é possível enumerar diversas histórias inspiradoras, arcos inesquecíveis e, especialmente, <i>companions</i> que marcaram época. Algumas são mais lembradas e queridas do que outras e, embora possam existir várias explicações para tal, é difícil não ver o óbvio: pelo menos durante as primeiras temporadas de seu retorno às telas, tanto o roteiro de <i><b>Doctor Who</b></i> quanto seu <i>fandom </i>foram racistas. Enquanto Rose Tyler (Billie Piper) e Amy Pond (Karen Gillan) são lembradas com nostalgia, companions de força, inteligência e relevância fundamental para a história são deixadas de lado, especialmente se não forem padrão. O caso mais óbvio de esquecimento de uma <i>companion </i>— ou desprezo completo por parte do <i>fandom </i>— é o de Martha Jones (Freema Agyeman) que, além de literalmente ter salvado o mundo algumas vezes e de ter tido um arco independente do Doutor, é uma mulher negra, o que jamais é perdoado, nem mesmo no universo fantástico de <i><b>Doctor Who</b></i>. </div>
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Faz quinze anos que a série retornou de seu <i>hiatus</i>. Desde 2005, tivemos doze temporadas, cinco regenerações e muitas <i>companions</i>. Conhecemos Martha Jones no segundo episódio da terceira temporada da série, “<i>Smith and Jones</i>”, quando, por um infeliz acaso, o Décimo Doctor (David Tennant) torna-se seu paciente no hospital onde faz residência. Infiltrado lá dentro, o Time Lord investiga algo estranho que tem ocorrido no hospital: bolsas de sangue estão sumindo sem explicação e ele, que estava à toa, resolveu que seria uma boa hora para inventar uma dor de estômago e se meter em problemas. Logo que eles se conhecem, uma chuva estranha começa a cair somente em cima do prédio em que se encontram e, em instantes, eles percebem que não estão mais na Terra: de alguma forma, todo o edifício foi transportado para a Lua. </div>
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O episódio segue e logo somos apresentados aos Judoon, uma raça alienígena de policiais do espaço cujo trabalho é cumprir ordens e aplicar penas legais. No entanto, para tal, eles não se importam com danos colaterais que podem causar, e dentre esses danos encontra-se um hospital repleto de pessoas, mas com oxigênio limitado. Para salvar a todos, o Doctor precisa descobrir o porquê de eles estarem ali a tempo, antes que o ar do hospital acabe e todas as pessoas — pacientes e a equipe do hospital — acabem mortos. Contudo, ele jamais teria conseguido não fosse a ajuda de Martha Jones, a jovem residente que com inteligência, perspicácia e rapidez consegue identificar a culpada pelo crime e salva a vida de todos, que voltam à Terra em perfeitas condições. </div>
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Quando voltam à Terra, o Décimo Doctor convida Martha para uma viagem, mas somente uma, deixando claro que não a quer como <i>companion </i>e que só estava lhe fazendo um favor. Como ela não é boba, obviamente aceita pois, ainda que ele tenha sido grosseiro com ela, existe a possibilidade de viajar não somente para qualquer lugar do universo, mas também para qualquer época. Quem recusaria isso? E é assim que eles vão parar na Inglaterra elisabetana e conhecem William Shakespeare (Dean Lennox Kelly), num dos melhores episódios de <i>Doctor Who</i>: “<i>The Shakespeare Code</i>”. Mas esse episódio, embora seja incrivelmente bem feito e divertido (como praticamente todo episódio em que o Doctor viaja no tempo), possui um dos diálogos mais terríveis entre o Doctor e uma <i>companion</i>. Obrigados a dividir um quarto e uma cama na hospedaria de Londres do século XVI, o Doctor se vê pensativo sobre o que estaria causando tantos problemas estranhos envolvendo o famoso dramaturgo. Enquanto Martha lhe ouve falar a respeito de suas dúvidas, ele solta: <i>“Rose saberia. Aquela minha amiga, Rose, agora ela diria exatamente a coisa certa. De qualquer forma, você não pode ajudar, é apenas uma novata. Esqueça. Te levarei de volta para casa amanhã”</i>. Obviamente, Martha fica arrasada pela insensibilidade e incapacidade do Doctor em perceber que ela está ali e claramente pode ajudar — lembrando que, há menos de vinte e quatro horas, ela havia salvado a vida dele, literalmente dando seu último suspiro, e impedido uma trama alienígena que poderia prejudicar seus pacientes no processo. Essas indelicadezas seguem acontecendo conforme a temporada avança e o Doctor continua tratando Martha como alguém descartável, sempre chorando pela perda de Rose — ao menos, até encontrar alguma outra mulher loira que lhe agrade. </div>
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<br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiLCK4rMELtDpYfZ-sSWRtD8ufAx2GDenINFNRGCjbanfmewdgexy3knACjHUCw2XQ2Hemp1cY0fu_PO1R5pcYmOaQMSr-0gDH7wirOO89m_T6PlaRxwvREDdBOu9USfXllkW5iIkNAh9M/s1280/the-shakespeare-code-doctor-who.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiLCK4rMELtDpYfZ-sSWRtD8ufAx2GDenINFNRGCjbanfmewdgexy3knACjHUCw2XQ2Hemp1cY0fu_PO1R5pcYmOaQMSr-0gDH7wirOO89m_T6PlaRxwvREDdBOu9USfXllkW5iIkNAh9M/s16000/the-shakespeare-code-doctor-who.jpg" /></a></div><br />
<div style="text-align: justify;">Uma das justificativas que as pessoas dão para não gostarem de Martha, chegando até mesmo a detestá-la e a chamá-la de pior <i>companion </i>que o Doctor já teve, é o fato de que ela não é Rose. É bem verdade que a partida de Rose, no final da segunda temporada, foi traumática: além de ela ter sido a primeira <i>companion </i>do <i>New Who</i>, a primeira em muitos anos de <i>hiatus</i>, o que certamente estabeleceu uma relação emocional com o público, a narrativa contada no arco de Rose é a de uma história de amor: a partir do momento em que o Doctor se regenera, assumindo as feições de David Tennant, Rose passa a olhá-lo de outra forma e todo o carinho e admiração que sentia por ele tornam-se atração e, até mesmo, amor. Tal sentimento é correspondido, mas nunca colocado em prática de forma romântica: por mais que goste de Rose, o Doctor conhece suas limitações e sabe que um relacionamento entre eles jamais daria certo já que ele é um <i>Time Lord</i> que não envelhece ou morre, regenera-se, e ela é uma garota humana que mal saiu da escola e tem uma vida toda pela frente, mas uma vida mortal. </div>
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Entretanto, embora exista uma história de amor entre os dois, não é possível afirmar que Martha não deveria ter sido uma <i>companion </i>pois ela está no caminho da felicidade do casal Rose e Doctor, como se a existência dela fosse um empecilho, ou mesmo afirmar que ele não se interessa por ela — chegando até mesmo a ser estúpido e frio — por causa de seu amor por Rose e de seu coração partido. Na metade da temporada, enquanto está disfarçado como humano no episódio duplo “<i>Human Nature/The Family of Blood</i>”, ele começa a namorar uma mulher, Joan (Jessica Hynes), uma enfermeira em uma escola para rapazes na Inglaterra de 1913, sob os olhos espantados de Martha, que precisa aturar tudo dele, até mesmo uma rejeição tão óbvia. Quando seu disfarce é arruinado, o Doctor convida a enfermeira para viajar com ele, como <i>companion</i>, para que eles possam recomeçar o romance na TARDIS, entre uma viagem e outra. Ela, entendendo a situação, não aceita o convite e vive sua vida longe daquela narrativa — no entanto, tanto ele quanto Martha sabem que o fato de ele nunca ter dado uma chance real para ela, seja romântica ou como amizade, não dependia do amor dele por Rose, mas sim do fato de que ele menospreza a nova <i>companion</i>. </div>
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O porquê do menosprezo nunca é verdadeiramente esclarecido. Martha Jones é tão inteligente quanto o Doctor, sendo ela própria uma doutora; é perspicaz, independente e, ainda que tenha sentimentos por ele, não deixa que eles tomem conta de sua vida ou que norteiem suas atitudes, permanecendo o mais racional possível e medindo as decisões que precisa tomar. Martha Jones é a <i>companion </i>que o Doctor não merece. Como é bem mostrado em “<i>The God Complex</i>”, episódio da sexta temporada, o Doctor é tão apegado a Amy Pond e foi tão apegado a outras <i>companions</i>, como Rose, porque elas centraram sua vida nele. O amor que elas sentiam por aquele Time Lord o tornou arrogante e dependente de adoração. Por mais que amemos o Doctor — e eu certamente sou uma grande fã tanto da série quanto do personagem —, é preciso reconhecer que ele ama ser adorado, mesmo que não o admita, e isso o torna prepotente. Martha o amava, mas amava mais a sua vida e a sua família. Ela não abandonou tudo por ele e soube a hora de ir embora, deixando-o sozinho para terminar sua residência em medicina, seguindo a própria vida e se atendo a seus planos. Mas, para além da questão narrativa do complexo de Deus que o Doctor possui, também existe o racismo intrincado na série que se aplica a Martha de tal forma que até mesmo outros personagens o percebem. </div>
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<br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRrcGSIqm5hJxo2OLPCQ6iE_ro3aCVYzJY4iP3WiHLfW7CmPfjOXsiHpup-LNKsAUSY2_wEyI-FsGZxWjPd6FjRRcNIpmDC1bF3wvnQuGsMR6446pJILcdPW2Qg6gqTtc9gNk0_jFbG-M/s1005/doctor-who-martha-jones-human-nature-the-family-of-blood.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="732" data-original-width="1005" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRrcGSIqm5hJxo2OLPCQ6iE_ro3aCVYzJY4iP3WiHLfW7CmPfjOXsiHpup-LNKsAUSY2_wEyI-FsGZxWjPd6FjRRcNIpmDC1bF3wvnQuGsMR6446pJILcdPW2Qg6gqTtc9gNk0_jFbG-M/s16000/doctor-who-martha-jones-human-nature-the-family-of-blood.png" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Em “<i>Utopia</i>”, episódio da terceira temporada, Jack Harkness (John Barrowman) volta à cena e ele e Martha Jones se conhecem e começam uma conversa sobre como o Doutor abandonou Jack, que também foi <i>companion </i>por algum tempo até que, ao final da primeira temporada, foi deixado para trás. Então, sabendo disso, Martha pergunta se é isso o que o Doctor faz, fica correndo de um lado para o outro e se esquece dos <i>companions </i>por ser muito ocupado, como se eles fossem coisas substituíveis, ao que Jack responde: <i>“a não ser que você seja loira”</i>. Nesse momento, Martha se dá conta de que Jack está falando de Rose e diz: <i>“ah, então ela é loira!”</i>. O Doctor fica possesso com aquilo e interrompe a conversa, mas o recado foi dado: você só não é abandonada se for padrão.</div>
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E não é só pela enfermeira que o Doctor se apaixona. Mesmo sofrendo pela perda de Rose, em “<i>Voyage of the Damned</i>”, episódio especial de Natal da terceira temporada, ele encontra uma bela e esperta garçonete, Astrid (Kylie Minogue), em uma viagem espacial e se apaixona por ela, chegando a trocar um beijo com a moça e ficando visivelmente abalado quando ela morre — abalo emocional que ele não sofreu pela perda de Martha, que no episódio anterior havia dito adeus ao Doctor e seguido sua vida após ver que não valia a pena conhecer todo o universo ao lado de alguém que não lhe valoriza. O que Rose, a enfermeira Joan e Astrid, a garçonete, possuem em comum? Todas são loiras. </div>
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A própria narrativa de <i>Doctor Who</i> concorda com isso já que, em diversos momentos, é dito o quão racista a estrutura da série está sendo através de outros personagens ou mesmo de atitudes do Doctor. No entanto, temos que considerar que são os próprios roteiristas da série que decidiram tomar esses rumos — se para fazer uma crítica ou de forma compulsória, apenas escrevendo histórias que refletem a forma como eles enxergam a realidade, não sabemos. O que podemos saber analisando o cenário é que sim, o Doctor é maravilhoso, mas até que ponto ele não é levado pelos mesmos padrões das outras pessoas? Até que ponto ele não tem os mesmos preconceitos? É interessante observar que isso é dito também durante a segunda temporada, e é a própria Rose, que é tão amada por ele e por todos, quem aponta: em alguns momentos, quando ele está irritado com qualquer coisa, ele simplesmente gosta de apontar os defeitos de outras raças alienígenas e expõe todos que ele considera inferiores a ele. Infelizmente, esse julgamento da inferioridade alheia parece possuir certo foco não somente em características psicológicas de personagens, mas também em questão de cor. “<i>The God Complex</i>” mostra bem esse lado arrogante e prepotente do Doctor, mas é o arco de David Tennant que nos faz entender o quanto ele se sente superior a todos — especialmente àqueles que não lhe agradam fisicamente, o que acontece com certa frequência a personagens não-brancos na série. </div>
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Martha Jones foi menosprezada por ele de muitas maneiras ao longo da terceira temporada, mas ela conseguiu se libertar daquilo indo embora e seguindo sua vida longe do Doctor. Pensar no racismo da série é interessante e importante, embora incômodo, especialmente para alguém que passou anos acreditando que não havia defeito algum na história do <i>Time Lord</i> que viaja pelo tempo e espaço e salva a Terra nas horas vagas. Vou continuar gostando muito de <i>Doctor Who</i> de qualquer forma, mas não dá para negar que o Doctor é escrito para não valorizar Martha e outros personagens negros por uma simples questão de racismo. E o problema não se encontra apenas no roteiro: o próprio <i>fandom </i>reflete isso. Basta fazer uma pequena pesquisa em fóruns sobre a série para encontrar reclamações sobre Martha e outros personagens não-brancos. Ainda que eu acredite que nem todas as pessoas possuem consciência do racismo por trás de tal juízo de valor, é decepcionante ver que o <i>fandom </i>de uma série sobre alienígenas e diferenças seja tão racista. Se fosse branca, Martha seria facilmente a <i>companion </i>preferida do <i>fandom</i>. Ela literalmente é conhecida como a mulher que caminhou pela Terra. Durante um ano inteiro, ela andou por todos os países de uma Terra apocalíptica para anunciar a palavra do Doctor e salvar o mundo ajudando-o a se libertar do Master (John Simm). Além disso, em basicamente todas as histórias onde o Doctor está em perigo e precisa de alguma ajuda, é ela quem precisa se virar: ela se torna uma médica inteligente que é obrigada a arranjar um emprego em uma loja, em 1969, para sustentar o <i>Time Lord</i> enquanto ele espera pela TARDIS; é ela quem o protege de si mesmo quando ele vira humano, se fazendo passar por empregada dele e sendo constantemente humilhada pelas pessoas racistas do início do século XX. Ela suporta tudo isso enquanto salva o mundo e chuta bundas alienígenas, nunca se deixando cair em desespero e sempre analisando a situação de forma fria e racional. Entretanto, o <i>fandom </i>só lembra da Rose e de como ela era engraçadinha e fazia um belo par romântico com o Doutor. Não é questão de colocá-las como rivais. Ambas são boas em suas narrativas, mas uma é valorizada e a outra, quando não é completamente esquecida, é apedrejada como a pior <i>companion </i>que o Doctor já teve, ainda que, de forma objetiva, ela possa ser considerada a melhor dentre elas tanto em capacidade, inteligência e ações. </div>
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<br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghRfUW17TAX0FBZw9-tvk_vgjrk20ksbdG-nw9EwCFkstjP4kcoOAhyutdKoEM_aGKQZMfDmBHHXwH5oMs45TNb3r7KAMnmtA7JiR1owGH_7uGKQPrRXq9lRSU9Kih7QpkvgIts19ai4w/s976/doctor-who-martha-jones-the-last-of-the-time-lords.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="549" data-original-width="976" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghRfUW17TAX0FBZw9-tvk_vgjrk20ksbdG-nw9EwCFkstjP4kcoOAhyutdKoEM_aGKQZMfDmBHHXwH5oMs45TNb3r7KAMnmtA7JiR1owGH_7uGKQPrRXq9lRSU9Kih7QpkvgIts19ai4w/s16000/doctor-who-martha-jones-the-last-of-the-time-lords.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Não é só a Martha que o Doctor subestima: ele também trata com superioridade a uma jornalista negra (Chandra Ruegg) em “<i>Partners in Crime</i>”, primeiro episódio da quarta temporada, e Mickey (Noel Clarke), namorado de Rose durante a primeira temporada e <i>companion </i>do próprio <i>Time Lord</i> na segunda. Apesar de Mickey possuir um papel importantíssimo por ser inteligente, entender de sistemas informáticos e lidar bem com tecnologia, auxiliando na salvação da Terra, ele ainda é chamado de Mickey, o idiota pelo Doctor, que só lhe reconhece o valor quando o rapaz quase morre para salvá-lo. Por alguns episódios, Mickey é literalmente comparado a K-9, um cachorro de metal que a ex-<i>companion </i>do Doctor, Sarah Jane Smith (Elisabeth Sladen), possui. Existem poucos personagens tão desprezados na série como Mickey — mas a semelhança entre eles é que todos são negros. </div>
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É bem verdade que Bill Potts (Pearl Mackie), uma jovem negra <i>companion </i>do Décimo Segundo Doctor (Peter Capaldi), é tratada com gentileza, respeito e preocupação por ele, que realmente se importa com ela e não a subestima. Mas ela possui um dos finais mais absurdos para uma personagem. Em seu desfecho, após ser transformada em um Cyberman, ela literalmente vira uma poça d’água. Literalmente. Bill é uma <i>companion </i>inteligente, divertida e não-hétero, uma estudante universitária que precisa trabalhar durante o dia para pagar seus estudos, gente como a gente, e deveria ter tido um arco melhor, especialmente por ter sido a primeira <i>companion </i>negra em quase uma década. Pode ser coincidência o fato de seu destino ter sido completamente ridículo e seu final abrupto e precipitado? Pode. Mas o histórico da série quanto a seus personagens não-brancos me faz pensar que o problema é mais profundo. Mesmo antes de Bill aparecer, o Décimo Segundo Doctor já estava destratando Danny Pink (Samuel Anderson), namorado de Clara Oswald (Jenna Coleman), um professor de matemática negro extremamente inteligente e decidido, de quem foi feito troça durante diversos episódios e que também ganhou um fim devastador. Me pergunto se ele teria tido o mesmo final se fosse branco. </div>
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Pensando nos arcos de Mickey e de Danny, é possível inferir que o Doctor os trata de forma tão desdenhosa e até mesmo agressiva por ciúme de suas <i>companions</i>, já que ambos são ou foram namorados delas. No entanto, o mesmo não acontece com Rory Williams (Arthur Darvill), namorado e, posteriormente, marido de Amy Pond, uma das <i>companions </i>mais queridas do New Who. Rory é tratado com todo o carinho e respeito pelo Doctor — e, adivinhem, ele é branco. Não me parece ter sido ciúme o motivador de tamanha subestimação, afinal. </div>
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<br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzJDv8Sepq3yoZdZY5BkbFfS2jdo6xeDjWEPnqq0ndAlUpev8OGyc1s465y9AL_xj176EqdAowxfT1k5pZR7YrtAXwmSkW-8JTsCCvgmHuXxSbcm3HsOzf0-5H5tWauIB6mKfmQjwYq8Y/s740/companions-doctor-who.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="416" data-original-width="740" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzJDv8Sepq3yoZdZY5BkbFfS2jdo6xeDjWEPnqq0ndAlUpev8OGyc1s465y9AL_xj176EqdAowxfT1k5pZR7YrtAXwmSkW-8JTsCCvgmHuXxSbcm3HsOzf0-5H5tWauIB6mKfmQjwYq8Y/s16000/companions-doctor-who.png" /></a></div><br />
<div style="text-align: justify;">Outro personagem negro negligenciado é Ryan Sinclair (Tosin Cole), companion da Décima Terceira Doctor (Jodie Whittaker). Ele é um jovem disléxico cuja avó, também negra, é morta já no primeiro episódio da décima primeira temporada. Então, ele passa a viajar com a Doctor, mas sempre é deixado de lado e tratado como se fosse um idiota — semelhante ao que aconteceu com Mickey nas primeiras temporadas do New Who. Preciso, entretanto, ressaltar que a Décima Terceira Doctor é muito mais gentil com ele do que o Décimo Primeiro jamais foi com Martha Jones. E é verdade que a série possui muito mais representatividade agora, com personagens não-brancos e não-héteros em destaque. Mas, ainda assim, é possível enxergar o racismo no arco narrativo de tais personagens. </div>
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<br /></div>
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Embora <i>Doctor Who</i> seja uma das melhores séries já feitas, ela possui seus problemas. O maior deles, longe de ser a falta de orçamento das temporadas iniciais, consiste no padrão social das pessoas atrás das telas. Enquanto a série for escrita por pessoas brancas, dificilmente veremos verdadeiras mudanças no roteiro. E pode ser que continuemos esquecendo as Martha Jones da Terra enquanto mulheres dentro de um padrão arbitrário e limitante, mas nem de longe tão competentes e fortes como ela, seguem sob o holofote. </div>
</div>
Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-40017070554128479242021-05-08T16:29:00.001-03:002021-05-08T16:29:38.794-03:00Uma vez não conta. Uma vez é nunca. <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5f8Q_wXiVSVJagGG_xeM85-HsHRfGX3d9tXUAswQ6dNGpozXwF6Q8RAaXhxDCr2YGk-T98a3R-d-LcFWJn69PeM5izOBZwuZf-Y8-SZwYMm96V2bN-jhV9l0jTFFN9B_qyozxMcIxStM/s1800/the-midnight-library.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1000" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5f8Q_wXiVSVJagGG_xeM85-HsHRfGX3d9tXUAswQ6dNGpozXwF6Q8RAaXhxDCr2YGk-T98a3R-d-LcFWJn69PeM5izOBZwuZf-Y8-SZwYMm96V2bN-jhV9l0jTFFN9B_qyozxMcIxStM/s16000/the-midnight-library.png" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em <i style="font-weight: bold;">A insustentável leveza do ser</i>, <b>Milan Kundera</b> escreve: </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;">"Não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que leva a vida a parecer sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.</span></b></i></div><div style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;"><br /></span></b></i></div><div style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;">Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Poder viver apenas uma vida é como não viver nunca."</span></b></i></div><div><br /></div><div>Penso muito nisso. </div></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com alguma frequência eu esqueço que já estudei música e estive numa banda. É bizarro como algumas coisas se perdem na mente, especialmente quando mudamos de rumo. Música era tudo para mim durante um bom tempo e eu deixei isso de lado forçosamente porque decidi que não queria ser aquela pessoa. Foi estranho abandonar uma identidade que já estava tão alicerçada, mas, ao mesmo tempo, a sensação de liberdade que isso me deu até hoje me deixa feliz, ainda mais porque sei que existe sempre a possibilidade da mudança. Nós não precisamos ser as pessoas que somos agora para todo o sempre. Isso é bom. </div><p style="text-align: justify;">Faz mais ou menos um mês que recebi uma carta de um rapaz finlandês. Participo de uma comunidade de pessoas que gosta de escrever cartas chamada Slowly. É um aplicativo que seleciona, por ordem de interesse e língua, pessoas do mundo todo com quem você pode trocar cartas. Eu amo fazer isso e já conheci algumas pessoas muito interessantes por lá. Mas esse rapaz finlandês me perguntou quem é esta Mia, a Mia de agora, a Mia que está conversando com ele. Qual é a narrativa dela? </p><p style="text-align: justify;">Essa é uma pergunta e tanto. </p><p style="text-align: justify;">É difícil traçar uma linha que me leve do ponto onde deixei de ser a Mia da banda até o agora, onde sou a Mia que analisa livros para editoras. Sei que tem muita coisa que passa entre um ponto e outro, mas o que isso tudo fez comigo é difícil de determinar. Existem anos que são meio nhé e existem aqueles pelos quais não passamos incólumes. 2020 certamente foi um deles e este 2021 está se provando ser da mesma substância. E embora seja certo que eu tenha mudado, é difícil definir quem eu sou neste momento, como tudo isso me afetou e qual narrativa estou vivendo - até porque eu estou vivenciando tudo isso ainda. Como olhar para o agora e ver o todo quando se está ainda a caminho de algo? Só conseguimos enxergar essas trajetórias pessoais depois de um tempo acabadas. Acho que o fato de não enxergar com clareza o que isso significa para mim, quem eu sou e qual é a minha narrativa indica que a história atual ainda está em andamento. E tudo bem. Mas isso também explica por que me sinto como a cobrinha no jogo da cobrinha, com movimentos limitados. Você vai para lá e para cá, mas está sempre no mesmo quadrado. É uma trajetória que venho explorando há um bom tempo, seja ela qual for, mas é difícil defini-la. </p><p style="text-align: justify;">Às vezes, eu só preciso de um meio do mato metafórico. </p><p style="text-align: justify;">Lembro da última vez em que me senti verdadeiramente feliz. Estávamos voltando de viagem, era início de janeiro de 2020, e paramos para almoçar num restaurante na beira da estrada. Havíamos passado por vários no caminho, mas eu não tinha sentido o ~~feeling com nenhum deles. E eu preciso sentir algo na energia do local que me atraia para ele. Já estávamos na estrada há algumas horas quando vi um restaurante escondido no meio do mato - literalmente. Havia um grande gramado com muita vegetação, árvores, moitas que cobriam a entrada do lugar e, ao fundo, um restaurantezinho pacato e simples. Disse para o Vinicius encostar porque almoçaríamos lá. Foi perfeito. </p><p style="text-align: justify;">O local era lindo. Apesar da fachada escondida, o que poderia parecer estranho, tudo era muito arrumadinho lá dentro. Foi como entrar numa casa de vó, mas uma que vendesse meu prato favorito e que tivesse Netflix no menu. Sentamos numa mesa bem no canto, pedimos uma Coca-Cola e um prato com fritas, bife e arroz. Foi tranquilo. A comida era boa, estávamos cercados por árvores e vegetação diversa. Não havia nada por perto além da estrada e do silêncio da natureza. Eu me senti verdadeiramente feliz. Naquele momento, não existia nem um pingo de ansiedade ou de nada do tipo que atrapalhasse a minha felicidade. Foi uma sensação de pertencimento. </p><p style="text-align: justify;">Cresci em restaurantes. Meus pais sempre tiveram restaurante/lancheria, então o ambiente me é familiar. Numa vida alternativa, largo tudo e vou para o meio do mato, abro um restaurantezinho e vivo lá, cuidando das minhas coisas e lendo meus livros sentada debaixo de uma árvore. É um dos cenários perfeitos para mim. O anonimato de uma vida simples. Estar rodeada por boas comidas, natureza e tranquilidade. Mas não é a vida que escolhi. </p><p style="text-align: justify;">Eu poderia tê-la escolhido. Teria sido simples, dada a minha família. Mas acabei indo por outro caminho e cá estou, jornalista, revisora, escritora. Não sei se foi o melhor caminho ou se outro teria sido melhor. Mas é o meu. É o que escolhi. É claro que, na minha cabeça, a vida na qual eu sou dona de um restaurantezinho no meio do nada é muito bonita e feliz, mas ela é uma idealização, um lugar especial que criei na minha mente onde todos os meus problemas não existem. Não é real. Não há como viver todas as possibilidades para só então escolher uma. </p><p style="text-align: justify;">Porém, isso é possível em<i style="font-weight: bold;"> A biblioteca da meia-noite </i>(<i>The midnight library</i> no original), livro escrito por <b>Matt Haig</b>. Nora Seed chega a seu limite quando, após ser demitida do trabalho, seu gato é encontrado morto na rua. Lidando com questões de saúde mental há muito tempo e não encontrando mais motivos para continuar tentando, ela decide suicidar-se. Para tal, deixa um recado, toma alguns comprimidos e... acorda numa biblioteca. Lá, ela é recebida pela bibliotecária de sua antiga escola, que lhe explica as regras do local: a biblioteca existe enquanto ela, Nora, existir. Ela está entre a vida e a morte e, entre ambas, há uma biblioteca de possibilidades. Todas as vidas possíveis de Nora estão escritas nos inúmeros livros existentes lá. E o grande livro dos arrependimentos é o guia para encontrar quais vidas Nora gostaria de viver enquanto o relógio marcar meia-noite. </p><p style="text-align: justify;">A cada arrependimento que escolhe, Nora é capaz de vivenciar uma vida num universo alternativo. A teoria dos multiversos está presente no livro, que mostra como cada escolha abre um leque de possibilidades e cria uma versão nossa. A Nora que escolheu continuar com a natação na adolescência, agora é uma campeã olímpica que dá palestras. Aquela que não abandonou a banda que tinha com o irmão está em São Paulo, num show gigantesco, e possui milhões de fãs. A felicidade, entretanto, é algo tênue, e Nora descobre que vidas grandiosas aos olhos do público nem sempre significam vidas felizes ou satisfatórias. Às vezes, a felicidade está no que é simples e tranquilo. </p><p style="text-align: justify;">Uma das mais felizes é uma em que ela é uma cientista no Ártico. Isolada de todos, correndo perigo ao enfrentar um urso polar, pesquisando o aquecimento global, Nora se sente verdadeiramente feliz. Não se engane, é tudo péssimo: o frio é <i>realmente</i> frio, do tipo que congela e não há o que fazer, ninguém da tripulação se conhece direito, o trabalho é difícil, as condições, péssimas, e, embora importante, não é como se o mundo ligasse muito para o clima. Não há reconhecimento. O anonimato dessa vida é tangível. Mas ela é repleta de uma sensação de pertencimento, de estar <i>fazendo</i> algo importante. E isso conta muito. </p><p style="text-align: justify;">Mas Nora segue em frente para a próxima vida, mesmo estando feliz naquela. </p><p style="text-align: justify;">Não é muito diferente em essência do que a personagem de Zoë Kravitz faz em <i style="font-weight: bold;">High Fidelity</i>. Assisti a série inteira em uma noite e foi uma experiência repleta de sentimentos. Eu certamente não imaginei que <i>sentiria</i> algo com a série, sequer pensei que fosse gostar dela a princípio, mas acabei me envolvendo com a história porque é aquilo: pessoas se autossabotando. </p><p style="text-align: justify;">Gosto de pensar nessa autossabotagem não como uma espécie de síndrome do impostor. Não é como se fosse um "eu não mereço isso", mas sim um "eu mereço muito mais do que isso". Mas não é bonito dizer que se tem ideias de grandeza, então a gente coloca tudo na conta da síndrome do impostor (que eu considero um conceito bem arrogante, para falar a verdade, mas prossigamos). Contudo, existe um limiar entre o sentir-se superior àquela vida que se está levando e o medo de ir atrás do que se quer. É confuso, especialmente porque, com o passar do tempo, é fácil deixar-se levar pela ideia de sempre merecer algo melhor. E se o melhor que você vai ter for o que você já tem? </p><p style="text-align: justify;">E se a sua melhor versão for a de hoje? </p><p style="text-align: justify;">A própria Sabina, de <i style="font-weight: bold;">A insustentável leveza do ser</i>, se encaixa bem nisso. Mas ela chama o que faz de ~~traição. Ela trai seus próprios desejos e expectativas, sempre ansiosa pela próxima traição da lista, que lhe fará sentir aquela sensação de renovação novamente. </p><p style="text-align: justify;">Uma vez não conta. Uma vez é nunca. </p><p style="text-align: justify;">Mas, se só existe esta vida, o que se faz com isso? Se conforma, se vive, se muda constantemente? Vai jogar bejeweled para passar o tempo? São questões. Porém, olhar para essas personagens (curiosamente, sempre mulheres) que seguem em busca de si e de quem desejam ser é algo bom. Se uma vez é nunca, vamos fazer esse vazio valer a pena. </p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com14tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-18594731428088086102021-04-26T18:27:00.002-03:002021-04-26T18:27:17.364-03:00Amparo? <table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtl2WQn2v5kGLY1z_qx_OPkFn3Lnt4kzQlDWCdwUWZxQEYcA1lCFYNykZ2jHBqW6DeWfFpQCo2sn8ESK6HJYgvfYnz6xZmPsJaPIg4OkY4bcyX8A5xlK4ENV_-yFCKjZZocWva6pTlZbE/s956/summer-interior.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="795" data-original-width="956" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtl2WQn2v5kGLY1z_qx_OPkFn3Lnt4kzQlDWCdwUWZxQEYcA1lCFYNykZ2jHBqW6DeWfFpQCo2sn8ESK6HJYgvfYnz6xZmPsJaPIg4OkY4bcyX8A5xlK4ENV_-yFCKjZZocWva6pTlZbE/s16000/summer-interior.jpg" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>Summer Interior</i>, de Edward Hopper (1909)</td></tr></tbody></table><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quase nunca choro. Durante toda essa pandemia, chorei apenas cinco vezes, o que é um número muito maior do que costumo chorar durante um ano normal. Aprendi a guardar meu choro para os momentos em que realmente seja necessário. Lembro que em 2013 estava lendo <i style="font-weight: bold;">A culpa é das estrelas</i> no ônibus. Já havia lido um bom pedaço e nenhuma lágrima tinha rolado até então. Porém, quando cheguei na parte em que a Hazel fala que a dor era um 9 quando, na verdade, era um 10, porque ela estava guardando o 10 dela para algo realmente horroroso, senti aquilo profundamente. Eu também guardo os meus 10 para situações em que não dá mais. </div><p style="text-align: justify;">Estava conversando com o Vinicius sobre isso. Não exatamente a respeito do choro, mas sim sobre como eu não posso me agarrar a memórias do passado, de uma infância feliz ou as bobagens da adolescência porque, caso o faça, entrarei numa espécie de surto. Quando você passa por muita coisa ruim ainda jovem demais, acaba ficando traumatizado. E cada pessoa tem a sua maneira de lidar com o trauma. A minha é deixar o passado pra lá e focar no que estou fazendo agora, no trabalho, nas leituras, na escrita, em arrumar o quarto, qualquer coisa que me dê paz de espírito e não me faça pensar em mim. </p><p style="text-align: justify;">Digamos que a pandemia não ajuda com isso. </p><p style="text-align: justify;">Também acontece que eu sei o que é passar por coisas horríveis, então, como esse sentimento vive em mim, o resto acaba parecendo algo com que eu posso lidar. Muitas vezes ultrapassei limites que parecem extremos para os outros, e realmente não são aconselháveis, porque os meus já foram todos rompidos e não tenho mais o sinal de pare que me diz que, olha, isso não dá. Porque total dá. Os meus limites são ridiculamente extensos. </p><p style="text-align: justify;">Mas prefiro não pensar neles. Porém, na pandemia, muitas vezes esses pensamentos me encontram. </p><p style="text-align: justify;">Há muito espaço, muito silêncio. Uma casa enorme quase só para mim. Os únicos sons são os dos animais da vizinhança, que sempre se intrometem em qualquer coisa que faço. Até então, a minha vida era bem agitada. Um pouco pelo caminho que escolhi seguir, mas esse próprio caminho foi motivado por um motivo bem maior e mais verdadeiro: eu preciso ter coisas para fazer, senão caio dentro de mim. E não há quem realmente possa me ajudar com isso. </p><p style="text-align: justify;">Talvez esse seja o motivo por que me surpreendi tanto ao me perceber chorando hoje. Entre as leituras e os trabalhos, estou reassistindo <i style="font-weight: bold;">True Blood</i>. Eu amo qualquer coisa relacionada a vampiros, mas essa série é uma das melhores que já assisti. Ela consegue capturar de forma perfeita a dualidade do vampiro, entre o nefasto e o sedutor. Mas eu não lembrava da última temporada. </p><p style="text-align: justify;">Acompanhei o desfecho da série em tempo real, lá em 2014. E fiquei triste, é claro, mas lembro que não tinha gostado muito. Me parecia estranho que uma série sobre vampiros terminasse daquele jeito, com questões políticas, religiosas e uma pandemia. Naquela época, eu achava isso o combo do inferno - mas de uma maneira criativa, do tipo "isso nunca vai acontecer", "os roteiristas pesaram a mão na imaginação", essas coisas. Quisera eu estar errada, mas cá estamos. É 2021 e faz mais de um ano que vivemos numa pandemia e que o Estado virou um caos entre política e religião. </p><p style="text-align: justify;">(Pausa para: ingenuidade da Mia de 2014 que ainda não conhecia suficientemente história mundial para saber que estamos <i>sempre</i> num caos entre política e religião; às vezes, mais acentuado, às vezes, não. Mas né, segura na mão do deslumbramento e vai.) </p><p style="text-align: justify;">A última temporada de <i style="font-weight: bold;">True Blood</i> nos mostra os resultados das ações de pessoas fanáticas no poder. Os vampiros estavam à solta, mas eles não eram esse perigo todo para a humanidade. Na série, são retratados como uma minoria, ainda que poderosa, que queria ser aceita, incorporada ao convívio. Todavia, grupos religiosos se tornaram grupos de ódio em pouco tempo e bastou que o pessoal da política comprasse o discurso para que alianças fossem feitas e um verdadeiro maquinário do ódio, criado. </p><p style="text-align: justify;">Isso tudo acontece em duas ou três temporadas. A última, no entanto, trata-se do luto. Do dizer adeus. Mais do que isso: do viver e conviver com o medo de perder a quem se ama, de não saber quem será o próximo, de não saber quando será a sua hora ou se você verá para ver uma cura chegar e a vida voltar ao normal. </p><p style="text-align: justify;">O mundo inteiro perdeu quase metade da sua população. Existe uma doença que, embora seja fatal somente a vampiros, transforma-os em criaturas quase irracionais, preocupadas somente com o seu bem-estar no aqui e agora - e que saem para caçar em bandos, matando quantos humanos puderem. A ordem é que todos fiquem em casa, especialmente à noite, e não abram a porta para ninguém. Qualquer um pode estar infectado, não é possível confiar. Também não é possível haver reuniões, festas, celebrações. A atmosfera de medo, cansaço e luto paira por todo o lugar. </p><p style="text-align: justify;">Mas nada disso me fez chorar. Nem naquela época, nem agora. Ver minhas personagens preferidas morrer, embora seja contrário ao meu desejo, apenas me fez lamentar a decisão dos roteiristas, sem provocar fortes emoções em mim. Como eu disse, guardo o meu 10 para situações realmente importantes. Não choro por quase nada, muito menos por mortes fictícias. </p><p style="text-align: justify;">Todavia, após uma certa morte em especial, a personagem principal, Sookie, que já perdeu tantas pessoas, simplesmente vaga pela cidade, tentando ajudar os amigos que restaram. Ela parece entorpecida, o que entendo. Eu mesma tenho estado num estado de entorpecimento há anos - ainda mais agora, na pandemia. A tristeza e o luto existem, mas é difícil permitir que sejam sentidos apropriadamente ou mesmo que sejam reconhecidos, que sejam o centro dos acontecimentos, quando diariamente pessoas morrem, tragédias acontecem e o mundo continua vivendo. Somos obrigados a continuar. Não há escapatória. </p><p style="text-align: justify;">Sookie está assim. Há anos vem perdendo pessoas, acontecimentos traumáticos a levaram a não se abalar por qualquer coisa, e agora há uma pandemia que está exterminando a quem ama, um por um, vampiro ou humano. Mas ela não chora. </p><p style="text-align: justify;">Até que um amigo não apenas lhe oferece os pêsames como, de fato, cuida dela. </p><p style="text-align: justify;">Ele a acompanha, a coloca para dormir, a ajuda a limpar e arrumar a casa. Garante que estará ali quando ela acordar. No momento em que ela o faz, se depara com uma casa decorada para uma festa. Ele diz que, sim, haverá uma festa - para celebrar a vida. Ela precisa ser cuidada e estar com pessoas. Aquele momento, toda a tragédia e a dor e o sofrimento e o medo da pandemia precisa ser sentido, mas a vida precisa ser vivida. Foi aí que eu chorei. </p><p style="text-align: justify;">Em primeiro lugar porque a simples noção de que pode haver <i>cuidado</i> de uma pessoa para com a outra, assim, sem mais nem menos, é algo que me emociona. Eu não sabia que me sentia tão desamparada até esse momento. Mas não tem ninguém cuidando de mim. Não tem ninguém que me pegue pela mão e me mande dormir, comer, tomar banho, que diga que estará comigo quando eu acordar, que me permita <i>sentir</i> sem ter de ser forte e simplesmente continuar. Tenho feito tudo isso sozinha há um bom tempo, especialmente durante esse ano que passou, e esse é um fardo muito pesado. Entendo perfeitamente o momento em que Fleabag diz para o Padre Gato que ela só quer alguém que lhe diga o que fazer porque ela não tem a mínima ideia e está cansada. É exatamente isso. Às vezes, só precisamos de alguém que cuide de nós, que realmente nos ampare. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgU0JvoNWdQFhJ6Fx1r6Jxf7tfzQGawu2QRd1nssqzMBR1WPjo4v9KvWNyX-bIZxTS7hsNSBh9e5MKQewRXBrVYV06VCMWZE5XdOO1TpsBnvWmpVfkmsGpc5ogfDkNBt-jHEz8RKVvOa9c/s500/true-blood-7-temporada-eric-northman.gif" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="250" data-original-width="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgU0JvoNWdQFhJ6Fx1r6Jxf7tfzQGawu2QRd1nssqzMBR1WPjo4v9KvWNyX-bIZxTS7hsNSBh9e5MKQewRXBrVYV06VCMWZE5XdOO1TpsBnvWmpVfkmsGpc5ogfDkNBt-jHEz8RKVvOa9c/s16000/true-blood-7-temporada-eric-northman.gif" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em segundo lugar porque eles fazem uma festa. Qualquer pessoa que já passou pelo menos meia hora comigo sabe que eu não sou alguém de festas. Quando possível, sempre prefiro ficar sozinha, ou ao menos apenas com pessoas confiáveis por perto - mas nada grande, nada muito. Contudo, faz mais de um ano que eu não saio de casa. As únicas pessoas que vejo são os meus pais - e aqui em casa, temos uma divisão bem independente nesse sentido. A verdade é que não passamos muito tempo juntos. Todo mundo tem as suas coisas para fazer e cada um lida consigo mesmo da maneira que pode. A casa é gigantesca e comporta isso, tanto para o mal quanto para o bem. </div><p style="text-align: justify;">O fato é que não há ninguém comigo há mais de um ano. Isso significa algo, mesmo para alguém tão introvertida quanto eu. Significa, em primeiro lugar, a falta de uma conversa real, de uma identificação. O luto é um momento de partilha da dor. Nossa sociedade atualmente confinou o luto a uma caixinha privativa dentro de casa, onde cada um o vive com discrição e um pouco de vergonha. Porém, o luto é algo que precisa ser sentido e partilhado. É necessário conversar sobre, mostrar o que se sente, ouvir outras pessoas. E a gente faz isso apenas por telas - no tempo livre, porque a vida continua agitada e agora não há limites entre a casa e o trabalho. O quarto virou um escritório e você não pode se esconder para chorar. Não dá para marcar um almoço com uma amiga para conversar e contar o que diabos está acontecendo e sair mais leve depois, ou ao menos compreendida, abraçada. A pandemia é violenta pela doença e pela morte, mas também porque nos tirou a possibilidade da partilha. </p><p style="text-align: justify;">Recentemente, tenho sentido falta do clima antes do Natal. Dos dias que o antecedem, preparando tudo, e principalmente das horas antes da festa. Como eu disse acima, não sou uma pessoa de festas, mas andar apressada pela casa, checando o jantar, a sobremesa, arrumando a decoração, tomar banho, passar maquiagem, colocar uma roupa bonita... O clima de expectativa por algo. Eu geralmente dava um oi, comia, ficava ali, existindo, sem grandes participações. Mas era parte daquilo, de qualquer forma, ao meu jeito. E me sentia incluída, sabia que poderia conversar com qualquer pessoa dali e ser compreendida, que estava entre a minha família ou, em alguns casos, entre pessoas conhecidas e queridas, todos trocando experiências e se sentindo abraçados. </p><p style="text-align: justify;">As pessoas estão morrendo. Nós deveríamos poder partilhar tudo o que vem com isso. </p><p style="text-align: center;">***</p><p style="text-align: justify;">Retomo este texto duas semanas depois de começá-lo porque coisas acontecem. E eu continuo com a mesma sensação. O medo é palpável, mas o luto também. </p><p style="text-align: justify;">Nesta semana, morreram algumas pessoas que eu conhecia. Outras, de quem gosto, estão mal, algumas hospitalizadas. E ninguém pode se reunir, não dá para conversarmos pessoalmente, nos consolarmos, tentarmos espairecer. Paira um senso de irrealidade. É como se a vida não estivesse acabando para tantos porque são tantas mortes, tanta tragédia ao mesmo tempo que a gente se embrutece. Me percebo pensando, de forma quase inconsciente, que haverá tempo para lamentarmos, para sentirmos, para vivermos esse luto coletivo no futuro. Porque o agora está firmado na irrealidade. Mas haverá mesmo? E o que estamos tendo agora, então? Eu não sei. </p><p style="text-align: justify;">Este é um não saber diferente daquele do início da pandemia, quando tivemos de aceitar a falta de controle. Este é um não saber mergulhado em exaustão. Faz mais de um ano que estamos nessa, e agora? Quais são as perspectivas? </p><p style="text-align: justify;">Eu não sei. </p><p style="text-align: justify;">Mas eu sei que entendo a Sookie e a forma como ela desaba quando finalmente alguém a ouve, a abraça, a ampara. Em um mundo tão insustentável quanto este, se alguém me desse carinho, eu iria me desmanchar na hora. </p><p style="text-align: justify;">E saber que essa é uma possibilidade que virou utópica é doloroso. Demais. </p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-80737426792400143882021-04-01T08:00:00.007-03:002024-01-03T14:02:29.505-03:00Bela Vingança para quem? <p style="text-align: justify;"><b></b></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><b><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjzAw7rzntqWZEJR0EJS1_5-OCup03TN3dpeFp1YCumOfjHmd1lDJDCi90idr_aSF3jVaWr2d5a1ioIkwEb8akEjKnl5NJ8VMMadZ5CMpvg3WEAT8zKbtdoMIcpUBfiqZyXZdIFuo_xGyQ/s2560/bela-vingan%25C3%25A7a-promising-young-woman.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1059" data-original-width="2560" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjzAw7rzntqWZEJR0EJS1_5-OCup03TN3dpeFp1YCumOfjHmd1lDJDCi90idr_aSF3jVaWr2d5a1ioIkwEb8akEjKnl5NJ8VMMadZ5CMpvg3WEAT8zKbtdoMIcpUBfiqZyXZdIFuo_xGyQ/s16000/bela-vingan%25C3%25A7a-promising-young-woman.png" /></a></b></div><p></p><p style="text-align: left;"><b><i>Atenção: este texto contém spoilers do filme e trata de temais sensíveis, tais como estupro e depressão</i></b></p><p style="text-align: left;">Antes de mais nada eu preciso dizer que sou uma sobrevivente de estupro. Já contei essa história algumas vezes, mas é necessário apontar isso neste texto. Quando eu tinha 13 anos, meu tio dormia lá em casa para ajudar a cuidar do local porque meu pai trabalhava à noite, meu irmão havia casado e minha mãe tomava medicações fortes para um câncer e não veria nada caso acontecesse algo. Eu, insone e pré-adolescente, ficava sozinha com o meu tio, que aproveitou todas as noites durante meses para me estuprar de diversas maneiras. A punição para ele nunca veio, mas para mim, sim. Além de todo o trauma que modificou para sempre a minha personalidade e a forma como enxergo o mundo, quando finalmente consegui reunir voz para contar a alguém, o que recebi foi não apenas incredulidade como acusações de que eu o havia seduzido. Eu, uma menina de 13 anos que nunca havia nem ao menos segurado na mão de um rapaz antes. </p><p style="text-align: left;">Hoje tenho mais do que o dobro da idade que tinha quando os estupros aconteceram e ainda me pego várias vezes perdida em pensamentos, em estado catatônico, revivendo aqueles terríveis momentos, os toques, os cheiros, as sensações - e, muitas vezes, desejando simplesmente morrer para não precisar existir dentro de mim. Nem preciso dizer que esse trauma afetou todos os meus relacionamentos, amorosos ou não, e me fez desistir de muitas coisas, como estudos, lugares e pessoas, simplesmente porque eu não conseguia lidar e não podia explicar sem arriscar ser chamada de louca, vadia ou coisas piores. A vida de toda mulher é difícil, mas há alguns fardos que realmente nos arrastam para um lugar sombrio e do qual não podemos escapar. </p><p style="text-align: left;">Digo tudo isso porque acredito que o nosso olhar crítico é intrinsecamente ligado às nossas experiências. Claro, é possível analisar uma obra sob um viés técnico, sendo imparcial, mas os sentimentos que a arte nos desperta são resultados da nossa visão de mundo, da forma como nos relacionamos com os temas abordados. Nem sempre os entendemos, mas considero interessante explanar os motivos que me levaram a essa ou aquela conclusão quando os tenho tão claros perante mim. E esse é o caso da minha reação a <i style="font-weight: bold;">Bela Vingança</i>, ou <i style="font-weight: bold;">Promising Young Woman</i>, no original. </p><p style="text-align: left;">O longa, dirigido e roteirizado por <b>Emerald Fennell</b>, foi indicado a diversas categorias ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original. Isso claramente tem um significado - para além da propaganda feita por trás dos filmes escolhidos, que raramente não possuem algum grande apoio por trás. Mas também diz algo sobre as mensagens feministas que são aceitas dentro de Hollywood. </p><p style="text-align: left;">Ano passado, um dos indicados foi <i style="font-weight: bold;">O Escândalo</i>, ou <i style="font-weight: bold;">Bombshell</i>, no original, filme que fala sobre o movimento #metoo dentro da mídia jornalística estadunidense a partir de um processo contra o presidente da Fox News que assediava e estuprava mulheres - geralmente suas subordinadas. A princípio, parece um filme feminista e empoderador. Todavia, ele faz um desserviço, sendo um filme sobre estupro de mulheres contado por homens. </p><p style="text-align: left;">Neste ano, temos <i style="font-weight: bold;">Bela Vingança</i>, que promete subverter o subgênero <i>rape revenge</i>. E assim o parece, ao menos no início do filme. Suas tomadas, que raramente sexualizam o corpo feminino, mas mostram toda a misoginia masculina, são animadoras. Cassandra (<b>Carey Mulligan</b>) sai por aí se fingindo de bêbada enquanto dá lições em homens que tentam aproveitar-se dela. Confesso que essa premissa, na qual uma jovem se finge de bêbada para ver se o homem em questão se aproveitará dela e, quando ele o faz, levanta-se, dá um discurso do tipo "nunca mais faça isso" e vai embora é algo que desafia a minha suspenção da descrença muito mais do que qualquer filme de terror com demônios e afins. Porque sabemos qual seria o destino de uma mulher que fizesse isso. Não é como se homens fossem as criaturas mais amáveis do mundo - especialmente aqueles que já demonstraram a inclinação para o abuso. Mas tudo bem, é uma obra de ficção, segue o baile. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimDNiVIOGwE7s_yP8WpWRl3fpd97nNZWpmZ7lHVNIX_8IGZIXeMgwuIbGtpSAXtUzntgue5JMvuUclCQC_TeMg1UKEW7BQ5iSzZBSFR5Jb7N7Qc3oVD2Efy7V4-Fg4NwY64VbwkYqBwzM/s2048/promising-young-woman-bela-vingan%25C3%25A7a2.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1025" data-original-width="2048" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimDNiVIOGwE7s_yP8WpWRl3fpd97nNZWpmZ7lHVNIX_8IGZIXeMgwuIbGtpSAXtUzntgue5JMvuUclCQC_TeMg1UKEW7BQ5iSzZBSFR5Jb7N7Qc3oVD2Efy7V4-Fg4NwY64VbwkYqBwzM/s16000/promising-young-woman-bela-vingan%25C3%25A7a2.png" /></a></div><p style="text-align: left;">O problema está durante o resto do filme. Quisera eu que Cassie realmente matasse os homens ao invés de lhes dar lições de moral. Poderia ser problemático, mas o seria menos do que os rumos tomados na história se mostraram. Desde o início, percebemos que há algo de errado com ela. Não sabemos o que aconteceu, mas com certeza ela sofreu um grande trauma de ordem sexual. Ela é arredia, possui um olhar permanentemente alerta, defensivo. Sua postura corporal nos mostra que ela está sempre a postos para sair correndo se for preciso. Todas as suas roupas em tons pastel, cabelo com franja e babyliss podem enganar, mas basta olhar para o rosto de Carey Mulligan para perceber que aquela é uma mulher que passou por muito sofrimento. Aquela é uma mulher com uma ideia fixa, com algo de que não consegue se libertar. </p><p style="text-align: left;">Logo descobrimos que sua melhor amiga, Nina, morreu. Nina é apenas uma lembrança, não aparece senão em poucas e rápidas tomadas de fotografias, onde sempre está junto de Cassie, se divertindo. Mas ela não tem voz, olhar ou corpo. Nina está morta. A única pessoa que parece ligar para isso é Cassie, que abandonou a faculdade junto da amiga quando esta foi estuprada e ninguém ligou, ninguém acreditou, ninguém se importou. Um processo, ameaças e humilhações mais tarde, Nina morreu. É dado a entender que, por consequência de uma depressão causada pelos eventos de estupro, perseguição e humilhação, ela suicidou-se. Mas não sabemos ao certo porque ninguém quer conversar com Cassie sobre isso e é o olhar dela que nos guia durante o filme. </p><p style="text-align: left;">Após um ex-colega de faculdade - a mesma faculdade de medicina que ela abandonou após o que aconteceu com sua amiga - encontrá-la acidentalmente em seu trabalho na cafeteria, eles engatam um relacionamento. Cassie demora para confiar nele, mas decide, por fim, colocar um ponto final àquela tentativa de <i>fazer algo</i> a respeito do que aconteceu com sua amiga, de vingar-se, de ser uma espécie de justiceira. Ela decide viver a sua vida. E é nesse momento que descobre, por causa de um vídeo do estupro de que ela não tinha conhecimento até então, que Ryan, seu namorado, era um dos homens presentes durante o abuso. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOJfAuv10Ca4Bj5o-9guy0cTJQgmvOZEW9deqoJVRApe33S__HxQ4BvUov-s9VPsSCCUgwVbCDlixE_zWevti3XxHmYew94DbKs8ZPbJPCR1G6ncZbI0OJy3TKLTxGIraDLbaudcp3E_8/s1200/promising-young-woman-bela-vingan%25C3%25A7a.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="1200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOJfAuv10Ca4Bj5o-9guy0cTJQgmvOZEW9deqoJVRApe33S__HxQ4BvUov-s9VPsSCCUgwVbCDlixE_zWevti3XxHmYew94DbKs8ZPbJPCR1G6ncZbI0OJy3TKLTxGIraDLbaudcp3E_8/s16000/promising-young-woman-bela-vingan%25C3%25A7a.jpg" /></a></div><p style="text-align: left;">É então que o filme desanda de vez. Não que estivesse muito bom até ali, mas uma narrativa de uma mulher traumatizada que aos poucos conseguia lidar com luto e a raiva pela injustiça e passar a confiar na humanidade novamente, retomando sua vida, o contato com a família e em um relacionamento feliz e saudável seria muito melhor, muito, muito melhor do que o que realmente acontece. Porque o que acontece é que ela morre. </p><p style="text-align: left;">Para se vingar. </p><p style="text-align: left;">Ao descobrir o vídeo, Cassie chantageia o namorado para que ele lhe dê o endereço da despedida de solteiro do homem que estuprou sua amiga, Al. Ela se prepara, coloca uma fantasia de enfermeira e vai até lá oferecer seus serviços como stripper num plano ao mesmo tempo idiota e infantil. Duvido que qualquer mulher que tenha sido estuprada ou ame alguém que foi não tenha fantasiado um dia em armar uma grande vingança, ir até o estuprador, fazê-lo confessar e pagar pelo que fez. E, ainda que existam problemáticas nisso, teria sido infinitamente melhor se o filme tivesse acabado com ela segurando uma faca ensanguentada com o sangue de Al do que da forma como acabou. </p><p style="text-align: left;">Ele a mata. Seu amigo ajuda a acobertar. Eles queimam o corpo dela numa fogueira gigantesca para esconder qualquer rastro. O casamento de Al com sua noiva acontece, o ex-namorado de uma Cassandra desaparecida cuja família está procurando é um dos convidados, mesmo sabendo que ela provavelmente está morta. Tudo parece bem no reino dos homens ricos e brancos. Até que um carro de polícia chega e ficamos sabendo que Cassie deixou mensagens programadas para algumas pessoas, avisando onde iria e o que provavelmente teria acontecido com ela caso estivessem recebendo aquelas mensagens. Al é preso, Ryan recebe as mensagens de texto de Cassie e o filme termina com um emoticon de uma carinha piscando na derradeira mensagem dela para ele. Uma mulher morta, porém feliz. Será? </p><p style="text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwb3DFVTRYFH-KSZXlG9boYePjukoBeBR9IngKOdMHnkMrK3sMq9loBsjewfjb5HmDLNfdduN2IZ3q6j0p4RJPSvQ99A_gc6jC2VHiZndw0Ug8O7NwrI2-OATH-ZWpHDnet2lilUsIwZs/s2048/promising-young-woman-bela-vingan%25C3%25A7a3.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1150" data-original-width="2048" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwb3DFVTRYFH-KSZXlG9boYePjukoBeBR9IngKOdMHnkMrK3sMq9loBsjewfjb5HmDLNfdduN2IZ3q6j0p4RJPSvQ99A_gc6jC2VHiZndw0Ug8O7NwrI2-OATH-ZWpHDnet2lilUsIwZs/s16000/promising-young-woman-bela-vingan%25C3%25A7a3.jpg" /></a></p><p style="text-align: left;">Eu não sei quantas vezes terei que bater na tecla do <a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/11/outlander-estupro.html" target="_blank">"estupro não é recurso narrativo"</a>. Mas também não sei quantas vezes terei que dizer que <b>projetos encabeçados por mulheres nem sempre significam projetos feministas</b>. <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/09/mulan-onde-esta-lenda-no-live-action.html" target="_blank"><i style="font-weight: bold;">Mulan</i> (o live action) é exemplo disso</a> e, agora, <i style="font-weight: bold;">Bela Vingança</i>, que tem mulheres por trás das câmeras nos dizendo que a melhor forma de se vingar de uma sociedade patriarcal que ampara homens abusadores é procurando a morte. Uma mulher morta vale mais do que uma sobrevivente. </p><p style="text-align: left;">Como mulher, me sinto preocupada com esse tipo de pensamento, especialmente porque esse é um filme que tem tido muita visibilidade e aplausos dentro da crítica, muito disso por conta de suas indicações a prêmios como o Oscar. Como sobrevivente de estupro, me sinto ultrajada e na obrigação moral de vir aqui dizer que isso tudo está errado. Essa é uma mensagem perigosa, dolorosa e antifeminista. </p><p style="text-align: left;">Conversando com outras sobreviventes, descobri que infelizmente o desejo pela morte é um pensamento que atormenta a muitas de nós. Mas aí a colocar isso num filme que trata justamente sobre estupro e sobrevivência de maneira a nos mostrar que <i>mulheres só conseguirão vingança morrendo</i> é muito, muito errado. </p><p style="text-align: left;">Cassie parece muito confiante e perigosa no início do filme, mas a única violência que perpetra contra os abusadores é lhes fazer pensar. Isso não faz o menor sentido. Tampouco o faz que a única violência real de vingança seja a morte horrorosa de Cassie, sufocada por Al. Que tudo isso tenha sido planejado por ela faz ainda menos sentido. <b>Além de ser antifeminista e perigoso, especialmente para sobreviventes de estupro mais psicologicamente vulneráveis, também é mal escrito.</b> Ele nos é vendido como um filme feminista que subverte o subgênero <i>rape revenge</i>, mas é <b>apenas um filme com duas mulheres mortas por causa de homens brancos, ricos e abusadores</b>. </p><p style="text-align: left;">A quem esse filme atende? Aos homens, que sabem ter uma rede de amparo entre seus amigos e que, mesmo quando interrogados pela polícia, levam tapinhas nas costas, pois ninguém quer prejudicar um homem branco e rico? Ao feminismo liberal, que ama narrativas de mulheres tão empoderadas a pronto de sacrificarem a própria vida em nome de uma vingança mal arquitetada e que não vinga ninguém? Ou às mulheres que sofrem violência sexual todos os dias? Deixo essa pergunta em aberto. Acho que a resposta não é difícil de encontrar. </p><p style="text-align: left;"><span style="font-size: xx-small;">*e não, a trilha sonora não é boa por um simples motivo: as músicas são ótimas, mas, com exceção de toxic, nenhuma se encaixa realmente em momento algum. não faz sentido. esse filme é frustrante de muitas maneiras e conseguiu desperdiçar uma trilha que poderia ter sido excelente.</span></p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-85764563968188234552021-03-29T08:00:00.001-03:002022-06-13T19:48:46.065-03:00Relendo meu livro preferido na pandemia: A insustentável leveza do ser<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9TLXjBd-JeqHgis3HVwko_5Vk4bQALReTWV1tOcyUWAOQfMvhFPyxqNNvW4Cnx4okjAQM76HtaLcIxJwE8zWOTQQZa_oojGJfkIxBmpHKxLo-Dax7ZCUTK-79MCVyjOzYW0YcsdW_Vkc/s1280/a-insustentavel-leveza-do-ser-milan-kundera.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9TLXjBd-JeqHgis3HVwko_5Vk4bQALReTWV1tOcyUWAOQfMvhFPyxqNNvW4Cnx4okjAQM76HtaLcIxJwE8zWOTQQZa_oojGJfkIxBmpHKxLo-Dax7ZCUTK-79MCVyjOzYW0YcsdW_Vkc/s16000/a-insustentavel-leveza-do-ser-milan-kundera.jpeg" /></a></div><p style="text-align: justify;">Sempre me espanto quando dizem que <i style="font-weight: bold;">A insustentável leveza do ser</i> é um romance erótico. Me parece uma fala de alguém que não leu o livro. Mas conheço diversas pessoas que o leram e mesmo assim afirmam tal coisa. Não sei o que pensar disso e fico visivelmente desconcertada - talvez elas sejam mais pudicas do que pensei que fossem, já que classificam como "erótico" algumas passagens com conteúdo sexual - que nem ao menos é explícito; é, antes de tudo, filosófico. </p><p style="text-align: justify;">Esse livro tem me acompanhado há muitos anos. Faz quase dez que o li pela primeira vez e suas palavras ficaram impressas em mim. Volta e meia o tiro da estante, leio alguns trechos ou o releio por inteiro, e há sempre uma descoberta nova tanto a respeito do livro quanto sobre mim mesma. Tendo a pensar que nossos livros favoritos revelam aspectos de nós mesmos que são difíceis de vislumbrar no cotidiano. Por que gostamos deles, o que pensamos ao lê-los, por quais motivos voltamos às suas histórias. Volto à obra de <b>Milan Kundera</b> por diversos motivos, cada um diferente conforme os anos passam. Dessa vez, foi para o Clube do Livro Querido Clássico. Mas fazia tempo que sentia que precisava relê-lo. </p><p style="text-align: justify;">O livro possui sete partes e, embora elas sejam encadeadas, todas elas possuem algo único em seus capítulos. São reflexões filosóficas e históricas que marcam a passagem do tempo para o autor e suas personagens - e também para nós, leitores, que nos transportamos para Praga em meados dos anos 1960 e acompanhamos as incursões de Kundera à história da Europa, da música, da filosofia e da teologia. </p><p style="text-align: justify;">Cada releitura me faz pensar mais sobre um aspecto ou sobre outro. Nas minhas primeiras leituras do livro, concentrei-me no drama de Tereza e Tomas, como ela, uma jovem autodidata criada numa família pobre e, muitas vezes, violenta, tinha nos livros a escapatória para um mundo melhor e desejava elevar-se através da cultura. Não é preciso fazer esforço para perceber por que isso me chamou tanta atenção, a mim, uma jovem de dezoito anos na época que, assim como Tereza, trabalhava parte dos meus dias num restaurante, servindo a bêbados e encontrando escapatória em livros clássicos. Foi uma identificação instantânea que me marcou e me guiou em muitos sentidos. Mas hoje, ao reler o livro novamente, me percebo muito mais uma versão da vida real de Sabina do que uma Tereza. </p><p style="text-align: justify;">Sabina foge de tudo o que lhe parece cercear a vida. Ela foge do kitsch, essa negação do erro, do sujo, daquilo de que temos vergonha. Sabina pinta porque encontra nisso também sua primeira traição: aquela feita para seguir rumos distorcidos do que seu pai queria para ela. E ainda que a primeira parte do livro a represente como uma amizade erótica de Tomas, sem grande voz, no restante da leitura descobrimos que Sabina é essa mulher que possui opiniões firmes sobre muita coisa, estabelecidas em oposição a tudo aquilo que lhe foi forçado durante os anos de juventude. A música, a alegria das marchas, a fidelidade, a devoção a partidos políticos, a necessidade de posicionar-se o tempo todo... Ela pavimenta seu caminho opondo-se a tudo que um dia lhe traumatizou. E, embora eu, de fato, concorde com muitas de suas opiniões e até mesmo com as formas com que lida com pessoas e situações, é nisso que mais me enxergo, especialmente agora: alguém que se formou a partir de uma luta constante pela aniquilação do kitsch, que pautou suas ações numa eterna oposição. </p><p style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;">"O drama de uma vida pode sempre ser expressado através da metáfora do peso. Dizemos que temos um fardo nos ombros. Carregamos esse fardo, suportando-o ou não, lutamos contra ele, perdemos ou ganhamos. Mas o que acontecera a Sabina? Nada. Deixara um homem porque quis deixá-lo. Ele a perseguira? Procurara vingar-se dela? Não. Seu drama não era o de peso, mas de leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.</span></b></i></p><p style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;">Até então, os instantes de traição exaltavam-na e enchiam-na de alegria com a ideia de que um novo caminho se abria e, no fim desse caminho, ainda uma outra aventura de traição. Mas o que aconteceria se a viagem acabasse? Podemos trair pais, um cônjuge, um amor, uma pátria, mas o que resta para trair quando já não houver pais, nem marido, nem amor, nem pátria?</span></b></i></p><p style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;">Sabina sentia o vazio em redor de si. E se esse vazio fosse precisamente a meta de todas as suas traições?</span></b></i></p><p style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;">Até então, ela não tinha tido, evidentemente, consciência disso, e é compreensível: o objetivo que perseguimos está sempre oculto. Uma jovem que deseja se casar tem vontade de uma coisa que lhe é completamente desconhecida. O rapaz que corre atrás da glória não faz a mínima ideia do que é a glória. Aquilo que dá sentido à nossa conduta é-nos sempre totalmente desconhecido. Também Sabina ignora que objetivo se esconde atrás do seu desejo de trair. A insustentável leveza do ser, é esse o objetivo?"</span></b></i></p><p style="text-align: justify;"><i style="font-weight: bold;">A insustentável leveza do ser</i> é um livro, acima de tudo, sobre a vida. E também muito político. Talvez até pudesse ser classificado como "anticomunista". É engraçado dizer isso porque conheço muitas pessoas de direita, que pautaram sua vida em oposição ao comunismo, que detestam esse livro. Mas Kundera passa boa parte dele falando mal do regime comunista que tomou conta da República Tcheca - e que serve de fio condutor a todas as ações das personagens. </p><p style="text-align: justify;">É mais engraçado ainda dizer isso justamente agora porque não foram poucas as vezes em que, lendo o romance, me percebi fazendo conexões óbvias com as diversas passagens nas quais Kundera relata os abusos e crimes do regime e a festa do ódio das pessoas com a realidade do Brasil de agora. O termo "festa do ódio", que é mencionado algumas vezes no livro, me chamou particularmente atenção, já que não penso que possa haver algo melhor para explicar o Brasil do movimento bolsonarista. É uma festa do ódio. Há muitas pessoas que votaram por ódio e destruíram o país por ódio - um ódio completamente forjado pelo kitsch, mas essa é uma conversa que, assim como Sabina, não tenho interesse em ter. Há muito me afastei de discussões - políticas, sociais, quaisquer que sejam. No livro, Sabina não se entende direito com Franz porque enquanto ela está cansada de falar no regime - contra ou a favor - e só quer viver a sua vida, ele possui uma ideia romântica sobre a Grande Marcha, como é chamado o movimento da esquerda durante a história, em busca de um mundo mais igualitário, melhor. </p><p style="text-align: justify;">É uma ideia romântica que admiro, mas de longe. Chega um momento em que o silêncio é muito atrativo, ainda que Franz e até mesmo Tomas estejam certos ao perceberem que as pessoas que marcham ou fazem comunicados públicos, expondo suas opiniões com grandes gestos, não estão necessariamente acreditando que aquilo, aquele ato banal e minúsculo mediante um regime totalitário, mudará algo de fato, mas apenas demonstrando que ainda existem pessoas que se importam e não têm medo de lutar pelo que acreditam. É importante, é até mesmo bonito, mas estou cansada. </p><p style="text-align: justify;">A luta por qualquer coisa que seja exige paixão, e eu não sou uma pessoa apaixonada por praticamente nada. Já fui, mas estou realmente exausta. É o que anos de gritos, brigas, um golpe e uma pandemia fazem com a gente. É também uma posição contra a necessidade de fazer algo. Eu sou contra muitas coisas, e tenho verdadeiro horror ao governo, mas não quero entrar na Grande Marcha. Não quero servir a um propósito. Quero o silêncio de quem já lidou com muitos gritos. </p><p style="text-align: justify;">Pelo menos por enquanto. Certamente, a pandemia alterará a todos. Tenho me percebido cada vez mais imersa num tempo sem tempo. Passado e presente se mesclam numa narrativa escrita por uma mênade. Foi interessante, também por isso, reler esse livro agora e dar um oi para meus pensamentos e visões de mundo de uma década atrás. A Mia daquela época não é a Mia de agora e nisso pude ver a extensão do tempo que passou. </p><p style="text-align: justify;">As personagens de <i style="font-weight: bold;">A insustentável leveza do ser</i> também possuem dificuldade para enxergar o tempo. Talvez isso seja efeito de momentos traumáticos, especialmente os coletivos, como governos ditatoriais e pandemias. A gente fica tão abalado que se abraça em si mesmo e de lá só sai para colocar metade da cabeça para fora da concha metafórica de vez em quando e verificar se o mundo não acabou. Bem, ainda estamos aqui. Mas estamos atordoados. </p><p style="text-align: justify;">Tereza, Tomas, Sabina e, posteriormente, Franz também sentem-se atordoados. É a vertigem, como Kundera diz - que não é o medo da queda, mas o desejo de simplesmente sucumbir a uma força tão maior e traumática que parece exercer um magnetismo incontrolável. E se deixarmos o peso de lado e nos tornarmos leves, mais leves que o ar, leves a ponto de estender os braços para a vertigem e deixar que tudo vá até ela e para ela? É um pensamento perigoso que perpassa o livro e também o agora. </p><p style="text-align: center;"><span style="font-size: x-large;"><i><b>"O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados."</b></i></span></p><p style="text-align: center;"><br /></p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-19388221069102926692021-03-26T17:11:00.002-03:002022-06-10T03:10:47.676-03:00Em defesa de Clara Oswald, a Garota Impossível <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHaPl8vtT0HalF6K1sLoDXlzWJVjJtSazxpqXyj0ammOiZecZYNcjUCLtN6UeQtAHqbBng-KMcYT3-wBxFUAHpA6y_-UlatBTPVZkr_NC2T_W4gkRhMp2F5cVITdxQG7TKNboiJD8xWEc/s1080/claraoswald4.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="530" data-original-width="1080" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHaPl8vtT0HalF6K1sLoDXlzWJVjJtSazxpqXyj0ammOiZecZYNcjUCLtN6UeQtAHqbBng-KMcYT3-wBxFUAHpA6y_-UlatBTPVZkr_NC2T_W4gkRhMp2F5cVITdxQG7TKNboiJD8xWEc/s16000/claraoswald4.png" /></a></div><p style="text-align: justify;">Clara Oswald talvez seja a companion mais rejeitada de <i style="font-weight: bold;">Doctor Who</i>. A maior parte dos fãs da série não gosta dela, a crítica parece rejeitá-la, em comparação as outras, e ela sempre acaba sendo esquecida quando são mencionadas as companions mais amadas. Clara simplesmente não entra no rol de personagens queridas em DW. Mas isso faz sentido? </p><p style="text-align: justify;">Do começo ao fim, Clara Oswald (<b>Jenna Coleman</b>) tem uma trajetória pouco comum em <i><b>Doctor Who</b></i>. Criada por <b>Steven Moffat</b> para substituir talvez os companions mais amados da série, Amy Pond (<b>Karen Gillan</b>) e Rory Williams (<b>Arthur Darvill</b>), depois do dramático episódio final da dupla, <i>The Angels Take Manhattan</i>, o contato inicial que o protagonista (naquela época, vivido por <b>Matt Smith</b>) tem com Clara é durante o primeiro episódio da 7ª temporada, intitulado de <i>Asylum of the Daleks</i>. </p><p style="text-align: justify;">A bordo de uma nave, sendo membro de uma tripulação rumo ao Alasca, ela se apresenta apenas como Oswin e, no final do episódio, descobrimos que ela foi convertida em um Dalek e não há nada a ser feito - a não ser ela despertar sua consciência, lutando contra seus instintos básicos como Dalek para salvar tanto o Doctor como Amy e Rory. Cinco episódios mais tarde, o Doctor volta a encontrá-la em <i>The Snowmen</i>, mas dessa vez durante a Era Vitoriana, em Londres. Nessa ocasião, ela se apresenta como Clara, uma preceptora que parece ser um pouco fora do comum e que possui um final trágico, assim como o de Oswin anteriormente. Embora tanto o Doctor quanto o público tenham sido apresentados a ela duas vezes, é em <i>The Bells of Saints John</i> que sua versão do século XXI finalmente dá as caras na série e conhecemos a verdadeira Clara. Ao ser mostrada em várias linhas do tempo diferentes, a produção levantou uma questão importante: <b>afinal, quem era Clara e qual é a sua verdadeira origem?</b> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTq-BSeQPteNpX9MOshD-80vMJYxUQm3Pn_hTDk4Yl1a4UA5Tsl7EJigfTHLP97A14uomXBrOAP6rZSr9i2sRWPl37zKP4IG2pm9Ry0rgD6iOKd3ZhiovET2Xf5x5tDqfH1xgWWI1RMbo/s1280/maxresdefault+%25281%2529.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="720" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTq-BSeQPteNpX9MOshD-80vMJYxUQm3Pn_hTDk4Yl1a4UA5Tsl7EJigfTHLP97A14uomXBrOAP6rZSr9i2sRWPl37zKP4IG2pm9Ry0rgD6iOKd3ZhiovET2Xf5x5tDqfH1xgWWI1RMbo/s16000/maxresdefault+%25281%2529.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">Essa é uma pergunta que se arrasta durante a segunda metade da 7ª temporada inteira. E é durante essa temporada que, no episódio final, <i>The Name of the Doctor</i>, o público passa a conhecer Clara como a <i>Impossible Girl</i> (ou a <i>Garota Impossível</i>, em tradução literal). Isso acontece porque ela escolhe entrar na linha do tempo do Doctor no seu túmulo, em Trenzalore, com objetivo de salvá-lo da Grande Inteligência (também é apresentada em <i>The Snowmen</i>), que tenta apagar qualquer memória do Doctor no universo - destruindo, assim, não somente o Time Lord como também todos os mundos que ele salvou. Dessa forma, Clara acaba criando uma ruptura no espaço-tempo onde várias das suas versões tentam resgatar e salvar o protagonista em diversos momentos fundamentais da sua jornada. O nome <i>“Garota Impossível”</i> surge porque nem mesmo o próprio Doctor conseguia entender sua origem ou o seu papel no início, chegando a dizer que esse é um dos maiores mistérios do universo e um que realmente vale a pena aprender. </p><p style="text-align: center;"><span style="font-size: large;"><i><b>“Eu não sei onde estou, é como se eu estivesse quebrando em um milhões de pedaços e só tem uma coisa que eu lembro: tenho que salvar o Doctor. Ele sempre está diferente, mas eu sempre sei quem é ele. As vezes sinto que estou em vários lugares ao mesmo tempo, correndo apenas para salvá-lo. Mas ele nunca me escuta. Ou quase nunca. Eu cheguei nesse mundo por causa de uma folha voando, e acho que ela ainda está. Não acho que algum dia eu vá pousar. Eu sou Clara Oswald, a garota impossível. E eu nasci para salvar o Doctor.”</b></i></span> </p><p style="text-align: justify;">Mas, mesmo com uma narrativa tão importante e essencial quanto essa, alguns fãs demoraram para aceitar a personagem - e alguns até hoje não gostam dela, seja porque ela foi a substituta de uma companion tão querida quanto Amy ou simplesmente por causa de um certo ciúme pela dinâmica da sua relação com o Doctor de Smith. É compreensível que, após uma companion tão querida, o público tenha dificuldade em aceitar que uma nova está ocupando aquele lugar e tendo uma relação tão íntima como o Doctor, mas Clara não deveria ser menosprezada pelas lembranças que sua sucessora deixou. Ainda assim, ela participou de um dos episódios mais importantes de New Who, <i>The Day of the Doctor</i>, e também esteve presente na regeneração do Décimo-Primeiro Doctor, no especial intitulado de <i>The Time of the Doctor</i>, e foi a principal companheira do Doctor de <b>Peter Capaldi</b> durante duas temporadas. No final, Clara Oswald era muito mais do que apenas a <i>Impossible Girl</i>. </p><p style="text-align: justify;">Uma das maiores críticas feitas à personagem se concentra na afirmação de que ela seria uma <i>Manic Pixie Dream Girl</i> dentro do arco do Décimo-Primeiro Doctor. Isso porque ao conhecê-lo de fato, no especial de Natal da 7ª temporada (lembremos que, antes disso, ela só tinha aparecido como uma jovem mulher transformada em um Dalek cujo rosto o Doctor nunca enxerga), o Doctor havia desistido de ser quem é e de se intrometer nos assuntos de seres humanos. Após a dolorosa e trágica perda de Amy e Rory, seus companions durante três temporadas - e dez anos, como ficamos sabendo em <i>The Power of Three</i> -, ele resignou-se a uma de suas muitas facetas: a de um ser solitário que, por viver demais, perdeu a tudo e a todos, ora porque eventualmente as pessoas seguem suas vidas, ora pela morte. Seja lá como for, o Doctor agora vive acima de uma nuvem, em sua TARDIS, em plena Londres vitoriana. E ele não quer saber de humanos ou de problemas. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0j2JaxhbBAp_mQQnimq1gTxe9-A29DeJgF_gbV4K_5W_ykpkGFOeRHFUjLRsHbd2mShRBlLMtFduBhTGPVLifTzBmgqwYZ357epHuJPclDAzkjpTniO1BzU_u2Gr94tZa2y5AJGTa6LA/s1280/Doctor_Who_2005_2012_Christmas_Special_The_Snowmen_kissthemgoodbye_net_1810.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="720" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0j2JaxhbBAp_mQQnimq1gTxe9-A29DeJgF_gbV4K_5W_ykpkGFOeRHFUjLRsHbd2mShRBlLMtFduBhTGPVLifTzBmgqwYZ357epHuJPclDAzkjpTniO1BzU_u2Gr94tZa2y5AJGTa6LA/s16000/Doctor_Who_2005_2012_Christmas_Special_The_Snowmen_kissthemgoodbye_net_1810.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">Obviamente, as coisas não funcionam como ele imaginava que funcionariam e logo ele está envolvido no mistério da neve que é muito mais do que aparenta ser. Mas, para que ele realmente salve o dia e retome o fôlego dos antigos tempos, Clara, uma preceptora vitoriana, é quem tem o papel de lhe despertar a curiosidade. Intercedendo a Madame Vastra e Jenny, ela consegue acesso ao Doctor através da única palavra a que ele responderia: <i>pond</i> (<i>lago</i>, em inglês, mas também o sobrenome de sua ex-companion, Amy Pond). E, embora nós já saibamos que Clara é a garota impossível e já havia tido uma participação especial na salvação do Doctor como a <i>“souffle girl”</i>, é nesse momento que o Doctor percebe que há algo a mais nela, algo que ele não consegue distinguir, mas que a faz ser a pessoa certa e o faz querer sair da toca metafórica. Como ele próprio diz a ela ao final do episódio, ao lhe entregar a chave da TARDIS: <i>“Eu nunca sei por quê, só sei quem”</i>. Mas tudo termina em tragédia e Clara, a preceptora vitoriana, morre. Porém, não antes de fazer com que o Doctor lhe prometa que continuará ajudando as pessoas, que não se esconderá mais. No entanto, ele se dá conta do mistério que a cerca quando, em seu funeral, vê sua lápide e seu nome, lembrando-se da mulher dentro do Dalek que havia lhe salvado a vida. E é então que somos apresentados à verdadeira Clara, uma babá do século XXI a quem o Doctor se apresenta insistentemente até ser aceito. </p><p style="text-align: justify;">Conforme os episódios vão avançando, passamos a conhecer melhor Clara Oswald, a Garota Impossível. O Doctor nunca resistiu a mistérios e, não conseguindo desvendar o dela, chega a envolver-se com uma médium para tentar descobrir quem é aquela mulher que, pela terceira vez, lhe salva a vida. Embora o mistério seja realmente bem construído e, com seu desfecho dramático, quando Clara literalmente se sacrifica para salvar a vida do Doctor - e a todo o universo, que estava sendo corrompido pelo apagamento de todas as vitórias que o Time Lord já havia tido -, o que pode, a princípio, soar como algo óbvio e estereotipado, é difícil olhar para tal narrativa e pensar que Clara é uma <i>Manic Pixie Dream Girl</i>, como ela nos é primeiramente apresentada. </p><p style="text-align: justify;">O termo <i>Manic Pixie Dream Girl</i> popularizou-se com personagens femininas de filmes do início dos anos 2000, em especial <i><b>Elizabethtown</b></i> e <i><b>500 Days of Summer</b></i>. Em suma, as MPDG representam personagens divertidas, engraçadas, leves e que servem como plot para ensinar uma lição para um homem, fazendo-o crescer, ou tirá-los de quaisquer poços em que se encontrem. Elas são uma resposta fácil para que um personagem saia da pior e consiga retomar seu ritmo normal - ou melhorar o que parecia sem solução. Mas elas não são desenvolvidas para além disso. Suas vidas pessoais não parecem importar, suas ambições passam despercebidas e suas trajetórias são centradas na visão do homem em questão e na forma como ele se sente a respeito dela. </p><p style="text-align: justify;">Embora Clara literalmente encare a morte para salvar a vida do Doctor e de todo o universo - e venha a morrer diversas vezes, espalhando-se pela linha de tempo de mais de mil anos do Doctor para ajudá-lo em todos os momentos em que ele quase morreu -, ela está longe de ser uma personagem sem ambições, background ou perspectiva. Pelo contrário. É bem verdade que, ao salvar a todos, ela declara que é a mulher que nasceu para salvar o Doctor, mas isso é um exagero narrativo e emocional daquele momento em específico, não vale para sua totalidade enquanto personagem. <b>Clara é uma das companions com maior grau de independência na série.</b> Sua vida está atrelada a do Doctor, mas ela é muito mais do que somente uma companion ou uma mulher que nasceu para salvá-lo. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqQQB9Ci5HzvsRKLWgu2VZyBq9DUXSVVVV6omLAqe2Q_NbFo6NwJpfUM144xddFFpFcf8N9vgC40PD-sD_1z_1AVeBTuBjNHQvcTw-vvD9ODbLvtFodE78N6xSlTwa0BpxGDM43MgIsDY/s1280/clara+trenzalore.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="720" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqQQB9Ci5HzvsRKLWgu2VZyBq9DUXSVVVV6omLAqe2Q_NbFo6NwJpfUM144xddFFpFcf8N9vgC40PD-sD_1z_1AVeBTuBjNHQvcTw-vvD9ODbLvtFodE78N6xSlTwa0BpxGDM43MgIsDY/s16000/clara+trenzalore.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">É possível compreender isso para além da narrativa de seu arco. <i><b>Doctor Who</b></i> é uma série com mais de cinquenta anos e muitas histórias foram contadas ao longo de tantas décadas. Algumas ideias se repetem - o que não faz com que a série deixe de surpreender o público, mas nos leva a pensar mais a fundo na mitologia por trás dela e de seu personagem principal. E o arco de Clara, como alguém que sempre volta ao Doctor, alguém misteriosamente presente, alguém tão importante, mas cuja importância exata não sabemos o porquê… esse arco já foi visto na 4ª temporada. Donna (<b>Catherine Tate</b>), a mulher mais importante de toda a criação, surgiu na vida do Doctor duas vezes. Seu avô, Wilfred (<b>Bernard Cribbins</b>), também. Como o próprio Décimo Doctor (<b>David Tennant</b>) diz: <i>“As pessoas levam centenas de anos para me encontrar… você conseguiu em uma tarde”</i>. Posteriormente, ficamos sabendo que Donna - e seu avô, em um momento diferente - também está conectada ao Doctor em um enredo apocalíptico que se transforma na salvação do planeta Terra - e talvez do universo. Claro, existe uma diferença entre o que vemos em Clara e o que vemos em Donna mas, em suma, ambas são companions cujos destinos estão intimamente ligados à salvação de tudo e que se imiscuem ao próprio Doctor, seja com seu DNA, seja em sua linha de tempo, para transformarem-se em algo a mais. </p><p style="text-align: justify;"><b>O que me incomoda nessas narrativas, entretanto, é que elas tendem a nos dizer que tanto Donna quanto Clara não eram pessoas completas antes do Doctor e que só tiveram sua importância a partir dele.</b> Isso é mais claro em Donna do que em Clara mas, ainda assim, é algo que está lá e é completamente errado. Ambas são companions que dividem entre si uma característica muito importante: elas têm família, emprego e não são completamente centradas nele. Enquanto outras como Rose (<b>Billie Piper</b>) e Amy dedicam suas vidas ao Doctor e têm verdadeira dificuldade em existirem para além dele, Donna e Clara, por mais que gostem do Time Lord e queiram permanecer com ele, possuem vida própria, vida além da TARDIS. É bem verdade que o final de Donna é um dos mais tristes do New Who e é possível afirmarmos que ela jamais teria escolhido ficar longe da vida de viajante no tempo se tivesse opção. Mas, embora ela amasse estar com seu melhor amigo numa caixa azul que voa pelo espaço e tempo, ela nunca centrou sua vida nisso a ponto de esquecer de quem é ou abandonar completamente família e amigos em nome do Doctor. Clara tampouco o fez. </p><p style="text-align: justify;">Após seu arco com o Décimo-Primeiro Doctor, podemos enxergar melhor Clara como uma pessoa independente dele. Ela arruma um emprego como professora de inglês numa escola, um namorado (<b>Samuel Anderson</b>) e reestrutura-se como uma jovem mulher adulta que trabalha e tem vida social. O Doctor é mágico e sempre o será. É praticamente impossível deixar a TARDIS de forma espontânea - talvez apenas Martha Jones (<b>Freema Agyeman</b>) o tenha feito -, mas não é por isso que uma companion precise se resumir a uma <i>Manic Pixie Dream Girl</i>. Sim, Clara ajuda o Doctor e lhe faz ver sentido na vida novamente. Não, ela não é apenas isso. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhctZulfRY3aATYxvae5G7FoqcB0EmAjIuXOct2081v6p9Rxel_9gklbJoWvX3tfa8JMGT6kN-43LM3UZfjjdMWL6nMtw1dumtFBvsUqyCofitg-gW8mQocIX-uarKi2HtCOstFC6Sogvg/s1280/caretaker.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="717" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhctZulfRY3aATYxvae5G7FoqcB0EmAjIuXOct2081v6p9Rxel_9gklbJoWvX3tfa8JMGT6kN-43LM3UZfjjdMWL6nMtw1dumtFBvsUqyCofitg-gW8mQocIX-uarKi2HtCOstFC6Sogvg/s16000/caretaker.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O momento de ruptura na trajetória de Clara em <i style="font-weight: bold;">Doctor Who</i> é a regeneração do Décimo-Primeiro Doctor. Com a chegada de <b>Peter Capaldi</b>, Clara passa a ter mais autonomia na série, indo além de seu arco como a Garota Impossível. A princípio, foi difícil para Clara lidar com a transformação física pela qual o Time Lord passou. Capaldi, ao contrário de Smith, é um senhor quase idoso quando entra em DW, com cabelos brancos, sobrancelhas permanentemente irritadas e um sotaque escocês. Ele não é mais o Doctor brincalhão, mas alguém que parece perdido dentro da TARDIS e que está disposto a sair guerreando com o mundo para poder ficar sozinho. Enquanto Smith era otimista, impulsivo e extrovertido, o Doctor de Capaldi é muito mais taciturno, introspectivo e até um pouco resmungão. Durante o clímax do primeiro episódio da 8ª temporada, <i>Deep Breath</i>, não fica claro se o Doctor empurra um homem da TARDIS ou não. Assim, surge um questionamento na cabeça do próprio protagonista: afinal, ele é um bom homem? O tema musical principal do Doctor, inclusive, é intitulado de <i>A Good Man?</i>. É uma dúvida que atormenta Capaldi durante todo seu arco - e que também acompanha Clara, que está perdida com alguém que lhe parece completamente novo. </div><p style="text-align: justify;">O Doctor de Capaldi passa um bom tempo tentando entender a si mesmo naquele mundo, num contexto completamente novo. Cada regeneração muda não apenas a aparência física, como cada molécula e personalidade do Time Lord. Clara não estava acostumada a isso e ela se depara com um senhor meio ranzinza e perdido que até mesmo apresenta traços de crueldade. Perto do Doctor de Smith, com seus discursos humanitários, senso de humor e sua gravata-borboleta, esse é um Doctor assustador. Mas a regeneração anterior, de Smith, antecipa que talvez isso possa acontecer e deixar Clara assustada. Para tal, ele deixa um recado para ela em seu celular pouco antes de sua regeneração. <i>“Eu acredito que você esteja assustada. Mas não importa o quanto você esteja, o homem que está ao seu lado está muito mais assustado do que você jamais poderia imaginar agora”</i>, ele diz. No instante em que Clara ouve a mensagem, o Doctor de Capaldi entende quem ligou para ela, mas percebe que ela ainda não consegue enxergar nele o homem a quem ela ouve no telefone. “<i>Você não consegue me ver. Você tem ideia de como é isso?”</i>. Contudo, ainda que estivesse em um momento de confusão, repleto de dúvidas, ela decide dar um voto de confiança naquele homem em sua frente, que diz ser o Doctor - não apenas por sua história juntos, que envolve tantas vidas e tragédias, mas também porque ela é uma mulher gentil e extremamente empática, algo que é explorado muito durante toda a sua trajetória na série. Ela abraça o Doctor, e ele responde dizendo que talvez ele não goste muito de abraços agora. Pouco importa, ela vai abraçá-lo mesmo assim. </p><p style="text-align: justify;">A partir daí, Clara passa a atuar não apenas como a companion do Doctor, nem mesmo como um mistério a ser resolvido ou a substituta de Amy. Não. Clara possui autonomia e um certo grau de igualdade perante aquele Doctor resmungão. Eles são amigos. Ela o confronta, o desafia, não se deixa dominar por todo o conhecimento do universo e a tendência arrogante que ele tem para com todos, já que é, indiscutivelmente, um dos seres mais poderosos que existe. É interessante como em <i>Flatline</i> Clara assume a posição do Doctor. Quando ele fica preso em uma TARDIS minúscula, é ela quem toma conta da sonic screwdriver e sai resolvendo o mistério, salvando pessoas - e salvando também a ele. Ali, podemos ver como Clara pode ser tão protagonista quanto o Time Lord. A diferença é que ela não regenera, ao passo que ele sim. Mas a atitude é o que faz com que o Doctor seja diferentes de seus irmãos de Gallifrey - e essa atitude, essa compaixão, essa coragem em arriscar-se não apenas para resolver o mistério, mas também para salvar pessoas, isso tudo faz parte de Clara. É mérito dela, não do Doctor. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoRCsjiBr3xo9Xd6PxmIFqv3HhANl-kzkkaR-p3AGHWNt2Vpuu-CBXo_XQor07GQKsccTZeUaFC-2ABN-FNjwXRgk5CDPcxYqs95ACB_vzftfqBgucIQkLIzS4VxaJ0RTsXSfiO40kW0U/s1300/Jenna-Coleman-as-Clara-on-Doctor-Who.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="650" data-original-width="1300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoRCsjiBr3xo9Xd6PxmIFqv3HhANl-kzkkaR-p3AGHWNt2Vpuu-CBXo_XQor07GQKsccTZeUaFC-2ABN-FNjwXRgk5CDPcxYqs95ACB_vzftfqBgucIQkLIzS4VxaJ0RTsXSfiO40kW0U/s16000/Jenna-Coleman-as-Clara-on-Doctor-Who.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">A independência de Clara é algo que incomoda o Doctor durante a 8ª temporada. No episódio <i>The Caretaker</i>, ele se veste de zelador e vai até a escola dela, onde ela leciona literatura clássica para alunos do ensino médio. Sim, há uma ameaça alienígena por perto, mas esse não é todo o motivo que o faz estar ali. O Doctor tem medo de perdê-la e quer fazer questão de inserir-se em sua vida, de cuidar dela. Mas Clara está bem: ela tem um emprego, um namorado e ainda tira um tempo livre para viajar na TARDIS pelo tempo/espaço. Contudo, após tantas companions dependentes, é difícil e estranho para ele deparar-se com alguém que lhe impõe limites claros. </p><p style="text-align: justify;">O final da 8ª temporada, com os episódios <i>Dark Water</i> e <i>Death in Heaven</i>, nos mostram um conflito terrível entre o Doctor e Clara. Após a morte de Danny Pink (<b>Samuel Anderson</b>), seu namorado, Clara desafia o Doctor para que ele consiga resgatá-lo. É quase uma traição - Clara joga a chave da TARDIS na lava para chantagear o Doctor a voltar no tempo e salvar Danny. Mas, mesmo assim, ele tenta ajudá-la. A amizade deles é profunda e real, não é feita de uma dependência ou adoração cegas. Clara sabe quem é o Doctor, ela esteve presente em todas as suas vidas, e ela também sabe que não há limites para defender as pessoas a quem ama. </p><p style="text-align: justify;">O plano não dá certo e Clara acaba deixando a TARDIS e tentando seguir com a sua vida. Ela retorno no episódio especial de Natal, <i>Last Christmas</i>. Mas ela não é mais a mesma. </p><p style="text-align: justify;">Já a 9ª temporada, uma das mais tristes de <i style="font-weight: bold;">Doctor Who</i>, é feita quase inteiramente de episódios com arcos duplos. Tudo é trabalhado de forma mais lenta e profunda. As tramas, com narrativas paralelas, convergem para o afastamento de Clara, que já não se sentia mais pertencente àquela vida de viajante das estrelas, não após a morte de Danny e com tudo o que passou com o Décimo-Segundo Doctor e sua eterna questão: "eu sou um homem bom?". Clara já não sabe. </p><p style="text-align: justify;">Mas seu destino não poderia ser o de apenas ir embora da série, dando adeus ao Doctor como Martha Jones o fez. Clara, embora tão independente quanto a outra companion, passou por muitos traumas que nenhuma antes dela havia passado. Ela entrou na linha de tempo do Doctor, desfazendo-se em diversas partes, diversas Claras, todas o salvando em suas regenerações, ao longo de mais de mil anos de história. Ela viu tudo, viveu tudo - mas tudo pela metade, de certa maneira. E quando teve a oportunidade de viver uma vida (mais ou menos) comum com seu namorado, ele morreu e seu corpo foi utilizado como parte de uma trama de Missy (<b>Michelle Williams</b>), a antagonista clássica do Time Lord, que criou um exército de cybermen. Danny Pink passou a vida inteira tentando fugir das lembranças de ser um soldado apenas para acabar como um, contra sua vontade. É devastador (e racista, mas isso fica para outro texto). </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiCOuU0DPAdFa0-1y9EzIsX1VV_Oajv2vF7MlGJ2ChaCgAOx5cMuHaVv8Wcu0GsgwC9Y7L_kVXm6bO-jBsMUKeOhki8EWCm4lhpBUYvLtZxwprv5WpMDiLW3l39lzZ7dhSU2q7amsj7fR4/s1280/maxresdefault+%25286%2529.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="720" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiCOuU0DPAdFa0-1y9EzIsX1VV_Oajv2vF7MlGJ2ChaCgAOx5cMuHaVv8Wcu0GsgwC9Y7L_kVXm6bO-jBsMUKeOhki8EWCm4lhpBUYvLtZxwprv5WpMDiLW3l39lzZ7dhSU2q7amsj7fR4/s16000/maxresdefault+%25286%2529.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">Embora Clara esteja decidida a deixar aquela vida com o Doctor, ela é pega no meio de um engano. Em <i>Face the Raven</i>, Clara e o Doctor investigam o que aconteceu com Rigsy, personagem já introduzido em <i>Flatline</i>. O rapaz acordou com uma tatuagem em sua nuca. Essa tatuagem está em contagem regressiva. Ele não tem nenhuma memória do ocorrido. </p><p style="text-align: justify;">É claro que eles não deixariam de ajudá-lo, mas as coisas não saem como o esperado. Com um roteiro que incorpora muito bem elementos de filmes clássicos noir, <i>Face the Raven</i> é um dos episódios mais sensíveis da série. Durante a investigação para ajudar Rigsy, Clara e o Doctor descobrem que Ashildr (<b>Maisie Williams</b>), personagem de <i>The Girl Who Died</i>, uma moça de um vilarejo viking que foi salva pelo Doctor, mas que acabou sendo condenada a viver para sempre, alcançando a imortalidade, agora é a líder de um grupo de executores que se esconde numa rua em Londres onde nada é perceptível aos passantes normais, pois a tecnologia ali usada é de ponta e não deixa rastros. Mas Clara, assim que descobre a verdade por trás da tatuagem de seu amigo, a transfere para si. Ela acha que as coisas darão certo, que está ganhando tempo até que eles consigam resolver o enigma: como tirar a tatuagem sem que ninguém morra? Pois aquela marca significa que, quando o tempo da contagem esgotar, você terá de encarar o corvo e aceitar sua morte, uma punição de um crime. Aquela não era uma punição para Rigsy ou Clara, mas para o Doctor, que foi atraído até lá para ser encarcerado numa prisão. Contudo, Clara é alguém que não suportaria ver um amigo correr risco de vida e arrisca a si mesma para tentar salvar alguém. É apenas quem ela é. E, por isso, ela é condenada e precisa encarar o corvo. Não se pode enganar a morte. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3VQzw-0Eanm86242hKVrNfxiOHhwT-96BkpSi0zmOBMAql5DRJsV0tLBHfbAi1vku8DJzWWuSSuNpXVMkBOG687x6jtFHiZs8rYY3IUpL2clQPrG_UBPM5q_gTw4hBj59ASBec0xgtOs/s1764/DW-Clara-Doctor-Face-the-Raven.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1320" data-original-width="1764" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3VQzw-0Eanm86242hKVrNfxiOHhwT-96BkpSi0zmOBMAql5DRJsV0tLBHfbAi1vku8DJzWWuSSuNpXVMkBOG687x6jtFHiZs8rYY3IUpL2clQPrG_UBPM5q_gTw4hBj59ASBec0xgtOs/s16000/DW-Clara-Doctor-Face-the-Raven.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;"><i>Heaven Sent</i> é um dos melhores episódios de <i style="font-weight: bold;">Doctor Who</i>. Nele, Capaldi atua praticamente sozinho o tempo inteiro. Ele sustenta o episódio durante 5 bilhões de anos que se passam dentro daquela prisão, onde tudo se repete. É o verdadeiro tempo sem tempo, uma prisão arquitetada para Time Lords - e uma feita especialmente para torturá-lo. A perda de Clara só entristece ainda mais o que já era trágico. Quando ele finalmente consegue sair de lá, percebe-se em Gallifrey, seu planeta-natal. E ele não deixará aquilo por nada. </p><p style="text-align: justify;">Se <i>Heaven Sent</i> é um episódio reflexivo, <i>Hell Bent</i> é repleto de ação. A princípio, parece estranho, alienígena num sentido mais tradicional da palavra (o que é curioso, pois a série toda é sobre um alienígena, mas ela nos dá um sentimento de familiaridade e conforto tamanho que dificilmente enxergamos os aliens como criaturas distantes de nós; contudo, em <i>Hell Bent</i>, a diferença é muito marcada, o que pode ser um choque). No início, vemos Capaldi entrando numa lanchonete no que parece ser o fim do mundo, uma região desértica e aparentemente desabitada. Lá, ele encontra uma garçonete e começa a contar uma história sobre uma garota que ele conhecia, mas de cujo rosto não consegue lembrar. Sua memória está fragmentada, porém ele sabe que ela é importante. Os sentimentos continuam. </p><p style="text-align: justify;">Nesse rememorar, descobrimos o que aconteceu em Gallifrey. O Doctor fez uso de uma câmara de extração, uma tecnologia gallifreyana, para retirar Clara de sua morte minutos antes que ela acontecesse. O corvo é congelado e Clara fica em uma espécie de estase. Ela não está viva ou morta. Seu coração parou entre uma batida e outra. Ela tem apenas um pulso restante e precisa viver o máximo possível até o momento em que ele retorne. </p><p style="text-align: justify;">Como sabemos, <i style="font-weight: bold;">Doctor Who</i> sempre nos deixou cientes de que existem acontecimentos que não podem ser mudados. São os pontos fixos da história. Mortes costumam ser assim, especialmente aquelas que envolvem viajantes do tempo. A morte de Clara, encarando o corvo, é um ponto fixo na história e no tempo. Ela não pode viver para sempre no intervalo de uma pulsação - um dia, ela precisará voltar. Os Time Lords restantes revoltam-se contra o Doctor, tentando obrigá-lo a mandar Clara de volta ao momento de sua morte. Mas ele não aceitará isso. </p><p style="text-align: justify;">Assim como no começo, o Doctor rouba uma TARDIS e foge com Clara. Eles vão até o fim do universo - o fim literal, onde o tempo também morrerá. A ideia era que lá Clara encontraria o pulso, já que aquilo é o fim de todas as coisas e o tempo é distorcido. Mas as coisas nunca são como as desejamos. O fim do universo não tem o pulso de Clara, mas tem Me (Ashildr, que adotou esse nome após tantas incontáveis vidas de memórias perdidas, nas quais tudo o que restava era ela, sozinha). O universo está morrendo e ela permanece. E é ela quem explica para eles que o híbrido, um tema que volta e meia surgia durante a temporada, tão temido pelos Time Lords, na verdade é uma combinação de Clara e do Doctor. De alguma forma, eles se fundiram em algo perigoso. Quando juntos, não há nada que os detenha. Suas personalidades - e imortalidades - são riscos para todo o universo. A única solução é separarem-se. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKPr_GYJ-FdEt5UKJGvp4JWyvwn9E5EeXWkvOaFFDSx1-41KhxNiX0bF0H_q3efhwUHDXnLanxWtbTUytvo7IvbEDTWFBlrO6rETJ23ahkE8XbAgKVeUJq-6KzJ35l2jm6cbBsk7vJbrg/s1100/2636825_orig.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="732" data-original-width="1100" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKPr_GYJ-FdEt5UKJGvp4JWyvwn9E5EeXWkvOaFFDSx1-41KhxNiX0bF0H_q3efhwUHDXnLanxWtbTUytvo7IvbEDTWFBlrO6rETJ23ahkE8XbAgKVeUJq-6KzJ35l2jm6cbBsk7vJbrg/s16000/2636825_orig.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">Contudo, eles sabem que enquanto um lembrasse do outro a separação seria impensável. Talvez pudesse ter ocorrido antes, quando Clara havia decidido deixar o Doctor, mas não ali, não no fim do mundo, não vivendo num intervalo de uma pulsação. Eles já haviam ido longe demais para separarem-se de boa vontade. Percebendo que aquilo realmente poderia ser perigoso, já que não haveria limites para os dois, eles usam o bloqueador neural e o ativam aleatoriamente. Um deles perderá todas as memórias do outro. </p><p style="text-align: justify;">É interessante como, dessa vez, não é a companion que perde a memória. O Doctor de Capaldi acaba recebendo o choque do bloqueador neural e esquecendo-se de Clara. Os sentimentos permanecem, as lembranças, não. </p><p style="text-align: justify;">Nesse momento, Clara transforma-se no Doctor. Ela é imortal, até que se diga o contrário, e junto de Ashildr rouba uma TARDIS e passa a viver como o Time Lord que um dia fora seu mais querido amigo. Todo o arco de Clara nos conduziu para isso. Ela sempre foi destemida, curiosa, boa em resolver enigmas e disposta a se sacrificar para salvar pessoas. Ela sempre foi uma espécie de Doctor. Sem ele, ela agora vive com sua própria companion, desbravando o universo - lamentando sua falta eternamente, como podemos ver em sua despedida final, já que ela é a garçonete que o atende no restaurante do fim do mundo. E o próprio restaurante é a TARDIS. As duas TARDIS se cruzam no espaço, sem se notarem, e seus destinos ficam separados para sempre. O Doctor não pode lembrar dela sem que isso cause um problema sério no universo - o que não nos é estranho, já que semelhante coisa ocorre entre o Doctor e Donna, que é forçada a esquecê-lo após absorver uma parte da energia Time Lord, tornando-se, ela mesma, em Doctor Donna. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi63448S2OVAjG8XZOuFjz6Krk5RTRGv_bGDmeb6JwpZl6_YU9tQjA56HzLX2SUWZkIwBk4KkBK6xm8dBH26jsyEY7Vkg_a5JJTrD7ukSVNtnOFeZxx4JVKhJ6HwIe0vyg7KQo1Es_ARNA/s1280/tumblr_inline_nz9y6qjeND1rjoxm9_1280.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="853" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi63448S2OVAjG8XZOuFjz6Krk5RTRGv_bGDmeb6JwpZl6_YU9tQjA56HzLX2SUWZkIwBk4KkBK6xm8dBH26jsyEY7Vkg_a5JJTrD7ukSVNtnOFeZxx4JVKhJ6HwIe0vyg7KQo1Es_ARNA/s16000/tumblr_inline_nz9y6qjeND1rjoxm9_1280.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">O final de Clara é satisfatório não só porque explora muito os pontos fortes da sua relação com o Doctor, mas também porque faz com que ela seja agente do seu próprio destino. Ela decide para onde vai, com quem vai e qual o seu próximo passo. Ela não foi condenada a esquecer tudo como Donna, ou a viver em uma realidade alternativa como Rose. É um dos finais mais felizes das companions do Doctor e, por causa disso, deixa um gosto agridoce na boca. Ao mesmo tempo que ela se despede, você quer saber para onde elas foram.</p><p style="text-align: justify;">É compreensível que Clara não seja tão amada pelos whovians quando estamos vindo do arco de Amy e Rory. Mas ela tem uma das (se não <i>a</i>) melhor construção de companion em <i style="font-weight: bold;">Doctor Who</i>. É triste e é bonito, delicado, tão complexo quanto ela mesma. Garota Impossível, salvadora do Doctor, imortal e uma espécie de Doctor ela mesma, Clara é fascinante. </p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-13901950426836822522021-02-10T08:00:00.002-03:002022-06-10T03:13:01.103-03:00Crazy Ex-Girlfriend e o final feliz de Rebecca Bunch <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj03n5JtjO8x8ZuCgz7ZEuJPPT0SdL7WUh_KZqNqJ16cqt_cCbZtrEidhU_gWiDOH3W0j07cyIpKVNHr3kb_3lF3wR7AP_P3gC4jFNeUU6xTvL7s53uOHvLk2ifUTIphz6rVlMA83QfE3k/s1800/crazy-ex-girlfriend-rebecca-bunch-final-2.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj03n5JtjO8x8ZuCgz7ZEuJPPT0SdL7WUh_KZqNqJ16cqt_cCbZtrEidhU_gWiDOH3W0j07cyIpKVNHr3kb_3lF3wR7AP_P3gC4jFNeUU6xTvL7s53uOHvLk2ifUTIphz6rVlMA83QfE3k/s16000/crazy-ex-girlfriend-rebecca-bunch-final-2.png" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">
Faz pouco mais de um ano que desliguei a televisão após terminar o último episódio da temporada final de <i><b>Crazy Ex-Girlfriend</b></i>. Durante esse tempo, questionei muitas vezes as decisões que levaram ao desfecho da série, me irritei, chorei um pouco e elogiei outro tanto a capacidade de <b>Rachel Bloom</b> e <b>Alice Brosh McKenna</b> de conseguir entregar uma história que não pecou por falta de representatividade e abordou de forma leve, porém real, a questão da saúde mental de uma mulher nos seus vinte e tantos anos que nunca havia tido um diagnóstico e acompanhamento corretos para conseguir viver consigo mesma e em sociedade. </div>
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<br /></div>
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Mas, apesar de todas as vezes em que amaldiçoei os céus pelo término da série, que certamente deixou um vazio na televisão, nunca questionei a abordagem escolhida para representar Rebecca, interpretada pela criadora da série, Rachel Bloom, e seu transtorno de personalidade limítrofe, mais conhecido como <i>borderline</i>. Mulheres borderlines são escassas em produções ficcionais e, quando retratadas, o são com estereótipos gigantescos sobre seus ombros, como o da violência, rispidez, inconstância e personalidade potencialmente suicida. Apesar de haver alguma verdade em tais adjetivos, eles certamente não definem uma pessoa com o transtorno, e há muitas que vivem com ele sem nunca terem recebido um diagnóstico adequado e sofrendo pelo estigma da “mulher louca”. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhdGyYSQgINZ0QBOe2uGtT9enyhJ6Ha2B1xPlq6k4hUSB0To9P_fItcG-LQbyJ2YU8HFIhWS1ieVXmcDxah4gfddINWb0qXON4c_OuSm0VA-1b-yKXk4dO1xKr2psk_Uarq6Iwm-n2kmpU/s1920/rebecca-bunch-crazy-ex-girlfriend-temporada-1.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1080" data-original-width="1920" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhdGyYSQgINZ0QBOe2uGtT9enyhJ6Ha2B1xPlq6k4hUSB0To9P_fItcG-LQbyJ2YU8HFIhWS1ieVXmcDxah4gfddINWb0qXON4c_OuSm0VA-1b-yKXk4dO1xKr2psk_Uarq6Iwm-n2kmpU/s16000/rebecca-bunch-crazy-ex-girlfriend-temporada-1.png" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Rebecca Bunch tem problemas. Desde o primeiro episódio da série, ela nos foi apresentada como uma mulher capaz de largar o emprego dos sonhos, como sócia de uma grande empresa de advocacia em Nova York, para morar em uma cidade pequena da Califórnia, a duas horas da praia (quatro com trânsito) só porque reencontrou o namorado da adolescência e sentiu nele o chamado da felicidade, o que não pode ser visto como normal. Porém, apesar do rótulo de “louca” que o título da série lhe confere, já na primeira abertura podemos vê-la questionando essa alcunha pejorativa e dizendo claramente que a situação é bem mais complicada do que isso. Rebecca tem problemas, mas ela não é louca. A busca pela felicidade é o que a move.</div>
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A Rebecca extremamente eficiente sendo uma advogada de sucesso numa Nova York em tons frios de azul e cinza dá lugar a uma Rebecca em tons quentes que deixa seus sentimentos aflorarem conforme <i><b>Crazy Ex-Girlfriend</b></i> avança, jogando fora os diversos comprimidos que tomava para estabilizar a depressão e a ansiedade. Apesar de viver uma vida que poderia ser vista como ideal, a vemos se sentindo infeliz em Nova York após receber a notícia de que seria promovida na firma de advocacia para a qual trabalhava, se escondendo em uma rua ao lado do trabalho e insistentemente repetindo para si mesma que <i>“é assim que a felicidade se parece”</i>. Esse momento é interrompido pela aparição de Josh Chan (<b>Vincent Rodriguez III</b>), seu antigo namorado a quem ela não via há dez anos, que surge caminhando do outro lado da rua, iluminado pela luz da seta de uma propaganda de margarina que pergunta <i>“quando foi a última vez que você se sentiu feliz de verdade?”</i>. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgy-hfqZgqZGsx6Ow9OGaztRrZ4bgKNKoUlIPtqgwPItXyuChyE2yhUV-ZOJ2VVfA_XILHN1DHzWwinZJrhKVOzZ79DKLpM3UgtlTAnGpEfbQqZrWjSzfKU8L9oqdOrvKOfoR4P2Q1AGaI/s1280/crazy-ex-girlfriend-west-covina.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="720" data-original-width="1280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgy-hfqZgqZGsx6Ow9OGaztRrZ4bgKNKoUlIPtqgwPItXyuChyE2yhUV-ZOJ2VVfA_XILHN1DHzWwinZJrhKVOzZ79DKLpM3UgtlTAnGpEfbQqZrWjSzfKU8L9oqdOrvKOfoR4P2Q1AGaI/s16000/crazy-ex-girlfriend-west-covina.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Assim como muitas de nós, Rebecca é romântica por ter sido criada à base de fórmulas de felicidade fabricadas por comédias românticas, filmes de princesa e musicais. Relacionamentos amorosos são coisas bacanas quando encontramos a pessoa certa, mas há um bom tempo eles deixaram de ser um objetivo em narrativas sobre mulheres no geral. Na vida de Rebecca, no entanto, um relacionamento estável com a pessoa de seus sonhos é o que ela pensa que lhe daria validação para ser feliz. E, durante três temporadas e meia, ela persegue incessantemente esse alvo, ignorando completamente o fato de que sua felicidade só depende dela. Mudando quase constantemente de foco no amor romântico, passando de Josh para Greg (<b>Santino Fontana</b>/<b>Skylar Astin</b>) e Nathaniel (<b>Scott Michael Foster</b>), conforme a lista de decepções amorosas de Rebecca vai aumentando, nos damos conta de que ela não está destinada a viver uma história de amor épico com Josh e que essa não é uma comédia romântica qualquer. Relacionamentos vêm e vão, mas seus problemas permanecem ali, assim como dúvida sobre qual destino escolher, que a consome e a faz se sentir cada vez mais enredada enquanto a pressão por ser feliz, exercida tanto pela sociedade quanto por ela mesma, aumenta. </div>
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<br /></div>
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Não é a primeira vez que tal narrativa é feita na ficção. Lançado em 1963, <i><b>A Redoma de Vidro</b></i>, de Sylvia Plath, é um daqueles livros que deixam uma marca em quem os lê. Um retrato franco da sutileza com a qual a depressão pode se manifestar, nele conhecemos Esther Greenwood, uma jovem que tem tudo para ser feliz, mas não consegue sentir-se bem consigo mesma ou com o mundo. Quando Sylvia Plath descreve a dificuldade de Esther em tomar uma decisão ao ver todos os figos, cada qual representando um futuro que poderia ter, ela está falando justamente de como, quando você tem depressão, existem muitas possibilidades, e todas parece realizáveis, mas não há como escolher uma e se dedicar àquilo porque não se sabe quem é e se haverá forças suficientes para ir até o fim. Também nisso é mostrado como idealizamos nossa felicidade para fora de nós, nos sentindo incapazes de tomar decisões definitivas, sucumbindo à autossabotagem, quando nosso interior está um caos. </div>
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<br /></div>
<div style="text-align: center;"><span style="font-size: large;"><i><b>
“Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto. </b></i></span></div>
<div style="text-align: center;">
<span style="font-size: large;"><i><b><br /></b></i></span></div>
<div style="text-align: center;"><span style="font-size: large;"><i><b>
Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era Ê Gê, a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar. </b></i></span></div>
<div style="text-align: center;">
<span style="font-size: large;"><i><b><br /></b></i></span></div>
<div style="text-align: center;"><span style="font-size: large;"><i><b>
Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.” </b></i></span></div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É no final da terceira temporada que Rebecca se dá conta de que não adianta fazer terapia e tentar ser uma boa pessoa se não assumir a responsabilidade por seus atos. Até então, ela se via como uma garota apaixonada que não podia ser responsabilizada pelo que fazia, contudo, mesmo tendo sido diagnosticada com transtorno borderline, ela tinha consciência de que não podia interferir na vida das pessoas com a justificativa de ficar com seu verdadeiro amor. Um dos pontos altos da tomada de consciência de Rebecca é quando ela, em meio a um furor hormonal, entra na deep web e encomenda o assassinato da nova namorada de Nathaniel, Mona (<b>Lyndon Smith</b>). Apesar de ter se arrependido logo ao acordar no outro dia e cancelado o pedido, Rebecca é atormentada pela culpa pois, embora todos saibam das coisas terríveis que ela fez em nome do amor e da busca pela felicidade, ela nunca foi responsabilizada, especialmente após receber o diagnóstico psicológico, o que fez com que as pessoas ao seu redor relevem ainda mais as atitudes equivocadas que ela havia tomado anteriormente. </div>
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<br /></div>
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É nesse ponto que acontece o final da terceira temporada, quando Trent (<b>Paul Welsh</b>) tenta assassinar Nathaniel e Rebecca o salva, quase matando o primeiro, que cai da cobertura de um prédio. Com diversas testemunhas e um homem quase morto no hospital, Rebecca é presa e levada a um tribunal para decidir qual será sua sentença. As opções são simples: cadeia ou alegar inocência com base em insanidade. Ela poderia ter feito isso, já que há um diagnóstico psicológico consistente, no entanto, a ideia de Rebecca é se livrar da culpa através da prisão. Obviamente isso não funciona e as próprias mulheres presas junto com Rebecca se irritam com ela, já que ela é uma mulher branca, de classe média alta, com um bom emprego e uma educação de ponta, que não precisava ir para a prisão, mas escolheu estar lá para se sentir melhor consigo mesma e se responsabilizar por seus atos. Ela sai dali quase à força, mas isso dá início a uma verdadeira transformação na vida dela, que aprende a respirar fundo e fazer pausas para tentar achar seu verdadeiro propósito. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhrtDz-uoPP36IHRi3TsqMRu5BzvE6qSp4-9YegQexqO8SpnBtjL4nBIlNEKVWxyd5nnAzyxYApCwQawqLK6PGRd97gSFcJtzVhuOwnOaq-7zFkbHn6m0YmxJeptpVMQlAmTn425eP6M-k/s1200/crazy-ex-girlfriend-rebecca-bunch-prisao-temporada-3.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="675" data-original-width="1200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhrtDz-uoPP36IHRi3TsqMRu5BzvE6qSp4-9YegQexqO8SpnBtjL4nBIlNEKVWxyd5nnAzyxYApCwQawqLK6PGRd97gSFcJtzVhuOwnOaq-7zFkbHn6m0YmxJeptpVMQlAmTn425eP6M-k/s16000/crazy-ex-girlfriend-rebecca-bunch-prisao-temporada-3.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Mesmo sabendo que precisa de um tempo para si e recusando a proposta de relacionamento de Nathaniel, Rebecca ainda sente necessidade de estar com alguém. Não nascemos para viver sozinhos, e é normal querermos amar e ser amados. Mas há momentos em que precisamos dar um tempo e curtir a nossa companhia, os nossos amigos, as nossas coisas, especialmente quando se está no início de um tratamento psicológico. Quando Greg ressurge em sua vida, agora tão diferente que mudou até mesmo de aparência, sendo interpretado por um outro ator (Skylar, você é legal, mas sempre sentiremos falta de Santino Fontana), a proposta do amor começando de novo com alguém que agora ela enxerga de forma completamente diferente é irresistível para Rebecca. Ela mergulha em um relacionamento com Greg como se fosse uma adolescente, sem conseguir impor limites nem mesmo para ter momentos para si mesma, chegando ao ponto de sufocá-lo e exigir dele que goste de coisas que ele não gosta apenas para fazê-la feliz. Largando o tratamento e os comprimidos, Rebecca age de forma irresponsável pois, mais uma vez, tenta curar seus problemas emocionais e psicológicos com o amor de um homem. </div>
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É interessante que <i><b>Crazy Ex-Girlfriend</b></i> aborde isso, já que não é incomum acontecer de pensarmos que tudo está resolvido quando estamos apaixonados. Tal pensamento, além de errado, é ainda mais perigoso quando exercido por uma pessoa como Rebecca, com transtorno de personalidade limítrofe. Como Dr. Shin (<b>Jay Hayden</b>) explica para ela, <i>“uma pessoa borderline é essencialmente alguém que tem dificuldade em regular suas emoções, alguém a quem falta proteção emocional para se sentir confortável no mundo”</i>. Claro que essa é uma simplificação do transtorno, mas nos serve para entender o quanto emoções podem ser complicadas para pessoas diagnosticadas com o transtorno, já que tudo é sentido com mais intensidade. Permanecer no tratamento, dando total atenção ao processo de aprendizagem de reconhecimento e controle de emoções, fazendo terapia de grupo e se compreendendo como uma pessoa mais sensível do que as outras, antecipando situações que podem se tornar problemas, é essencial para Rebecca, mas ela demora um pouco até perceber isso. </div>
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<br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhjEZgdtBSszh5tynKYXhUb0ICsyyBkXVCjNMhX-DO80hmkvO7F5JTuELeLlazNztY70Us3diM3TmZ5AL_bl28BT4xsdaFzgYPAbaBQqwPHcCkqgl0O3xpgvRH_LdbR3iKuTAh1FW4crMI/s2048/crazy-ex-girlfriend-borderline.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1340" data-original-width="2048" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhjEZgdtBSszh5tynKYXhUb0ICsyyBkXVCjNMhX-DO80hmkvO7F5JTuELeLlazNztY70Us3diM3TmZ5AL_bl28BT4xsdaFzgYPAbaBQqwPHcCkqgl0O3xpgvRH_LdbR3iKuTAh1FW4crMI/s16000/crazy-ex-girlfriend-borderline.jpeg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Em uma cena importantíssima, é mostrada a lista de características, com nove itens, que podem indicar a existência do transtorno de personalidade limítrofe em alguém. Para que haja a possibilidade, é necessário que a pessoa marque ao menos cinco dos nove itens. Rebecca marcou os nove, sendo um deles o chamado “sentimento de vazio crônico”, que se caracteriza por um sentimento de incompletude, como se houvesse um buraco dentro da pessoa, levando-a a sentir-se como nada ou ninguém, o que pode causar tentativas de preencher tal falta com excessos de coisas que parecem boas, como sexo, comida, drogas ou amor. Não é preciso ir muito longe para perceber qual excesso Rebecca comete na série. Seus episódios de vazio existencial fazem com que ela busque validação para existir em relacionamentos românticos, se apegando de forma nada saudável aos homens de sua vida.</div>
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Não é à toa, portanto, que durante anos ela foi erroneamente diagnosticada como depressiva. Apesar do quadro depressivo fazer parte do transtorno, reduzir Rebecca ou qualquer outra pessoa borderline, ficcional ou não, a tais momentos é fazer um diagnóstico apressado e condená-las ao sofrimento por não haver compreensão de quem são e do porquê sentem as coisas tão intensamente, inclusive a tristeza e o vazio. O diagnóstico errado pode levar a pessoa a se afundar ainda mais em comportamentos perigosos que só lhe trarão mais sofrimento, como enxergar o amor romântico na forma de uma tábua de salvação, quando a única resposta é o tratamento psicológico e o autocuidado. </div>
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<br /></div>
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Ao contrário do que acontece em <i><b>Fleabag</b></i>, quando a protagonista permite que o Padre Gato entre em seu espaço pessoal reservado a reflexões e performances escapistas de que sua vida é uma série, quem adentra o espaço secreto de Rebecca não é um homem, mas sua melhor amiga Paula (Donna Lynne Champlin). A escolha de quem finalmente conseguiria ver Rebecca por completo poderia ter levado os rumos da série para o mito do <i>one true pairing</i> (amor verdadeiro, aquele a quem a pessoa é destinada), mas essa narrativa é quebrada com a presença de Paula que, embora aparentemente não seja o centro da vida de Rebecca, é a pessoa com quem ela possui maior conexão emocional e que realmente está ali, após idas e vindas emocionais, disposta a enxergar a amiga da forma como ela realmente é: uma pessoa que está tentando achar seu lugar no mundo e em si mesma. O drama de <i><b>Fleabag</b></i> é muito parecido com o de <i><b>Crazy Ex-Girlfriend</b></i>, embora as séries possuam abordagens diferentes para a saúde mental feminina. A primeira é muito mais pesada, apesar de seus alívios cômicos; já a criação de Rachel Bloom se propõe a ser leve e divertida, com todas as suas músicas e figurinos em cores brilhantes, mas os temas pesados ainda estão ali, ainda temos uma protagonista tentando se encontrar em um mundo que lhe parece mais hostil porque ela é hostil consigo mesma e que não aprendeu a reconhecer e estabelecer seus limites pessoais. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcLDJgpnJCKzb9LV-tMx-Y52u-9A6QzZgfa4KmpsZzvB85dILU8e2nqKQFsUavfYGk_7FOFZaCFl-qkD_yurua71MhuuhDBtiStWaQriktOEP02ND_4T1SrlFQHuTauTD03Zkl3iUnV1w/s1351/crazy-ex-girlfriend-rebecca-greg-josh.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="900" data-original-width="1351" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcLDJgpnJCKzb9LV-tMx-Y52u-9A6QzZgfa4KmpsZzvB85dILU8e2nqKQFsUavfYGk_7FOFZaCFl-qkD_yurua71MhuuhDBtiStWaQriktOEP02ND_4T1SrlFQHuTauTD03Zkl3iUnV1w/s16000/crazy-ex-girlfriend-rebecca-greg-josh.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Enquanto a conexão emocional e verdadeira de Fleabag com o Padre Gato a faz aprender que pode ser amada, mesmo que não seja perfeita, o laço entre Rebecca e Paula, uma amizade sem julgamentos, finalmente faz com que a protagonista perceba que, para além da terapia e da medicação, ela precisa entender a si mesma e se estabelecer como pessoa independente. Apesar do desenrolar divertido dos três encontros perfeitos com Josh, Nathaniel e Greg, e de amá-los a ponto de poder escolher qualquer um deles para iniciar um relacionamento sério, assim como a figueira de Esther Greenwood, ela não consegue decidir com qual deles ficar. Todos os futuros parecem ótimos: um casamento no restaurante italiano de Greg, cercada de amigos e familiares; a vida de mulher casada esperando um filho de Nathaniel, preparando o berço do bebê que virá; ou o futuro brilhante com o qual sonhou durante muitos anos com Josh, duas crianças e uma casa iluminada pela luz do sol da manhã, na correria do dia-a-dia para tomar café da manhã, deixar as crianças na escola e ir trabalhar. Embora ela possa escolher qualquer uma dessas possibilidades, seu fantasma do Dia dos Namorados futuro lhe mostra que, não importa qual a escolha e o quanto ame cada um dos pretendentes, não há felicidade ali porque ela ainda não é uma pessoa completa em si mesma. </div>
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É importante salientar que, para além do transtorno de personalidade de Rebecca, a melhora para ela não está focada somente na terapia, mas também em tirar do pedestal certezas que tinha até então do que deveria ser sua vida. Um cara a quem ama, talvez casamento e filhos, uma vida de comercial de margarina, isso era a felicidade para ela, felicidade imposta tanto a partir da constante ladainha de sua mãe quanto por filmes e musicais que mostram a mocinha finalmente feliz em seu destino, salva por um belo príncipe que a amaria por toda a eternidade. Desconstruir esse pensamento leva tempo e dá trabalho, mas ela consegue fazer isso, como bem podemos perceber no penúltimo episódio de <i><b>Crazy Ex-Girlfriend</b></i>, quando ela rejeita os três pretendentes a seu coração. Essa abordagem do aspecto emocional da saúde mental de uma pessoa borderline é particularmente importante porque mostra que, embora o diagnóstico possa ser o mesmo, cada um lida de forma diferente com suas questões psicológicas. O meio nos afeta e não podemos ser confinados a definições preguiçosas tiradas de um manual de psicologia. Todos temos algo de único e prioridades diferentes. A de Rebecca era ser feliz, mas ela estava procurando no lugar errado. </div>
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A jornada de Rebecca rumo à saúde mental é árdua e exaustiva. Suas vitórias são comuns, coisas simples do dia-a-dia, mas que fazem a maior diferença em sua vida, como sair de casa ou ir até uma churrascaria de carro com um amigo sem entrar em assuntos dramáticos ou pesados demais. Claro que com isso ela aprende que as coisas não são bem assim e não é possível controlar o comportamento de outras pessoas para se ajustar de acordo com as necessidades dela, mas saber reconhecer isso e não surtar porque um amigo não está obedecendo ao seu script mental também é uma vitória, ainda que pareça pequena a olhos distantes. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjd0Ua5MQ9dGSYmUxb3yJRJ2CfhIViupcyJfYncopNbomspaKXoLqZ2L5JevQeBMzEceBjR9usxLREkPJu5S0_7F_EEFYsZAanXx3Hj-v3UiCd83QvP3CpMTTxlLhw46KsXQ7wpnVqvMKw/s2048/crazy-ex-girlfriend-borderline-psic%25C3%25B3logo.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjd0Ua5MQ9dGSYmUxb3yJRJ2CfhIViupcyJfYncopNbomspaKXoLqZ2L5JevQeBMzEceBjR9usxLREkPJu5S0_7F_EEFYsZAanXx3Hj-v3UiCd83QvP3CpMTTxlLhw46KsXQ7wpnVqvMKw/s16000/crazy-ex-girlfriend-borderline-psic%25C3%25B3logo.jpg" /></a></div>
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Em sessão com sua psicóloga, Dra. Akopian (Michael Hyatt), Rebecca revela que se sente mal porque todos os amigos estão bem e ela parece não estar fazendo progresso. <i>“Eu vejo a vida como uma competição, e agora estou perdendo. Quero congelar todos os meus amigos para conseguir tempo para encontrar uma carreira melhor e um parceiro de vida.”</i> Isso é feio, mas é real. Todos já nos sentimos deixados para trás por conquistas de nossos amigos e de pessoas à nossa volta. Mas parte do processo que garante a saúde mental é reconhecer isso e não entrar em uma corrida contra o tempo para conseguir alcançar as metas que eles alcançaram, mas compreender que, além de cada um ter seu tempo, objetivos e prioridades são coisas muito pessoais e não podem ser medidos pelo sucesso ou fracasso alheio. Para Rebecca, no entanto, isso pode ser ainda mais complicado do que um simples entendimento de que a vida não é uma competição. Como borderline, ela sente tudo intensamente e o sentimento de estar atrás no jogo da vida logo se transforma na certeza de ser um fracasso e de não merecer ser amada ou compreendida. A própria escolha do nome de Rebecca já indica sua personalidade. Bunch, seu sobrenome, significa “muito”. Tudo é muito para Rebecca, já que ser borderline basicamente significa não ter limite emocional. Ela não gosta, ela obceca; ela não detesta, ela odeia; ela não fica triste, ela entra em depressão; ela não fica feliz, fica eufórica.</div>
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Após todo o drama de Trent e Rebecca finalmente estar retida para averiguação do que havia acontecido, Nathaniel chega perto de compreendê-la, mas falha ao submeter um argumento escapista, brilhantemente mostrado no dueto <i>“<a href="https://www.youtube.com/watch?v=sqJ6YWbBGVk" target="_blank">Nothing is Ever Anyone’s Fault</a>“</i>, se usando de fatores externos como os pais, o contexto histórico e o Big Bang para justificar suas más ações. Apesar do amor existente entre os dois e de Nathaniel claramente estar ansioso para recomeçar seu romance com ela, Rebecca agora precisa encarar os resultados de suas escolhas e assumir a responsabilidade. Somos produtos de traumas de infância e coisas que nos aconteceram, mas existe um ponto na vida em que tomamos consciência de que não somos só isso. Viver em negação e não pensar em como suas ações afetam as outras pessoas é ser alguém terrível. Ninguém ali havia conseguido enxergar com clareza até então que a jornada de Rebecca é de autoconhecimento, e não de amor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
<center><iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/r_hxc1aJ0Io" width="560"></iframe></center>
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No final da segunda temporada, quando Rebecca está prestes a se casar com Josh, é cantada a música <i>“<a href="https://www.youtube.com/watch?v=-9Tze1gfmvY" target="_blank">Rebecca’s Reprise</a>“</i>, que nada mais é do que um medley com diversas músicas de momentos definidores da trajetória dela até aquele momento. Contudo, apesar de ser curta e não ter gravado muito na memória do público, nela percebemos chaves da busca por felicidade de Rebecca e como ela enxerga o mundo. A letra, bastante reveladora, diz:</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: center;"><span style="font-size: large;"><i><b>
“Bem, Rebecca, agora você conseguiu. Finalmente você conseguiu tudo que disse que queria. Então tire um momento e respire fundo, porque finalmente você será a heroína da sua própria história, a princesa no conto. Numa reviravolta fantástica, descobri que aparentemente a mágica existe, posso senti-la em meu vestido e no meu véu. Filhinha do papai, princesa do seu mundo, isso é algo que nunca conheci antes. Mas agora que sou uma noiva, ele olhará para mim com orgulho… Porque meu pai vai me amar de um jeito maravilhoso, tudo do passado vai simplesmente cair fora. Meu pai vai me amar, e minha mãe vai me amar e Josh vai me amar e então eu nunca mais terei problemas novamente.”</b></i></span> </div>
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A letra da música, de uma ingenuidade quase infantil, mostra o quanto ela está se iludindo, afundada na falsa expectativa de que, assim que entrar pelo corredor do altar, tudo mudará. Ela agora será uma senhora casada com o amor de sua vida, respeitada e amada por seus pais, com um conto de fadas se estendendo à sua frente. Como sabemos, as coisas não funcionam assim, nem na vida real e nem em <i>Crazy Ex-Girlfriend</i>. Josh a abandona no altar e Rebecca se sente completamente perdida, já que o homem no qual ela havia depositado todas as suas expectativas a deixou. </div>
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<br /></div>
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Durante toda a sua vida, Rebecca performou o papel que faria com que as pessoas ao seu redor lhe amassem mais. Para ser amada pela mãe, cursou Direito em duas faculdades de ponta, se tornou uma brilhante advogada e foi trabalhar em Nova York, em um apartamento gigantesco, porém vazio, ganhando uma fortuna, mas se sentindo um lixo. Por não conseguir ser amada pelo pai, se envolveu com um homem mais velho que lhe fazia lembrar do amor que não teve, e entrou em colapso nervoso quando o relacionamento não deu certo. Na tentativa de recuperar a memória da última vez em que havia sido feliz, largou toda sua vida em Nova York e se mudou para o outro lado do país, indo morar numa cidadezinha longe de tudo, e tentou ser a Garota Legal que vai a festas e tem muitos amigos e está sempre maquiada e arrumada e disponível. Para ter uma amiga fiel, aceitou entrar em esquemas de stalking sinistros, usando roupas de espionagem e fazendo coisas claramente ilegais que lhe ajudaram a conseguir o que queria, mas também lhe fizeram ser uma Garota Legal e Apaixonada disposta a qualquer coisa para conseguir seu amor, inclusive realizar a fantasia de sua amiga ao viver uma trama arriscada de perseguição e quebra da lei. Rebecca se ajustou a cada pessoa da sua vida na busca por amor e aceitação porque, além de desejar intensamente ter seu final feliz, ela não sabia quem era e simplesmente vestia personagens de acordo com as necessidades das pessoas, inclusive de seus interesses amorosos. </div>
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<br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfh4my9M7AFBWUKVeBLTk-JlhhwdIfRVhCzj4AXbv2wNF4tkD48LqHvjNpzoobOUa6jw4O74qoKQ7fzuPhFdNxWv19H_x93gdNtPkwJHDS2mNb-IHO3oF8KHPZkPkF7rssN8N0pMlKUMg/s2000/rebecca-bunch-crazy-ex-girlfriend-temporada-4.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1333" data-original-width="2000" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfh4my9M7AFBWUKVeBLTk-JlhhwdIfRVhCzj4AXbv2wNF4tkD48LqHvjNpzoobOUa6jw4O74qoKQ7fzuPhFdNxWv19H_x93gdNtPkwJHDS2mNb-IHO3oF8KHPZkPkF7rssN8N0pMlKUMg/s16000/rebecca-bunch-crazy-ex-girlfriend-temporada-4.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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Os parceiros românticos que escolhemos por vezes são representações de quem gostaríamos de ser. Mas escolher um deles é fechar totalmente a possibilidade de outro futuro, e certamente não ajudaria em nada a jornada de autodescoberta e aceitação de Rebecca, uma vez que enquanto tivesse todas as possibilidades em aberto ela poderia ser qualquer coisa. Portanto, a solução final foi rejeitar os três pretendentes e focar em ser uma pessoa melhor para si mesma, não para performar expectativas das pessoas à sua volta. </div>
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<br /></div>
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Prestes a tomar a decisão a respeito do homem com quem teria um relacionamento sério e que seria O Escolhido em definitivo, Rebecca está uma bagunça. Ela não consegue se decidir quanto a um dos três, já que todos eles, agora evoluídos como pessoas, são compatíveis com ela e há sentimentos entre todos. Nesse momento, Paula vai lhe visitar e Rebecca, tentando determinar qual será seu futuro, encara o infinito e mergulha em sua própria mente, vasculhando narrativas musicais que a ajudem a entender o que seu coração deseja. Quando Paula pergunta a Rebecca o que diabos é aquilo que ela faz de desaparecer por uns instantes olhando pra o infinito como se catatônica estivesse (coisa que também já vimos em <i><b>Fleabag</b></i>, por sinal), ela não sabia, mas havia feito a pergunta mais honesta e importante que alguém já fizera para a amiga. Rebecca passou quatro temporadas em busca da felicidade, pensando que a acharia no homem de seus sonhos, quando na verdade os verdadeiros momentos de felicidade (ou de sinceridade para consigo mesma) aconteciam em sua cabeça, quando ela se projetava como a estrela de um musical, narrando a própria vida através de canções. É aí que Paula, sabiamente, percebe a amiga e toda sua complexidade e lhe diz que é isso o que ela deve fazer, ela deve escrever as músicas que estão em sua cabeça e que lhe ajudam a entender coisas sobre si mesma. Esse é o caminho da felicidade para Rebecca. </div>
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<br /></div>
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Claro que as coisas não acontecem da noite para o dia. Se passa um ano entre esse momento e o final da série, onde vemos uma Rebecca segura de si, solteira, revelando o grande projeto no qual trabalhou durante um ano em um restaurante no Dia dos Namorados. Finalmente, ela se sente confiante o suficiente para mostrar o que sente, o que pensa e como enxerga o mundo. O processo que a levou até ali não foi fácil: foram muitos dias ensaiando, tomando aulas de piano e de canto, desafinando muito e aprendendo a compor músicas, tudo para seguir seu sonho, que não é o de ser uma estrela de musical, mas de ser feliz. Ela só queria ser feliz, e conseguiu achar esse caminho ao encontrar a si mesma e ser sincera com seus desejos. Apesar de toda a pressão para que fosse uma advogada de sucesso, tendo estudado em Yale e Harvard, Rebecca passou dois anos em um processo de desapego da figura que queriam que fosse para construção da figura que gostaria de se tornar, deixando seu emprego, abrindo uma lojinha de pretzels e indo atrás de aulas artísticas para expressar a si mesma. Mas ela não teria conseguido dar nenhum desses passos sem a terapia, sem o conhecimento de que possui um transtorno de personalidade e sem o apoio de seus amigos, que conseguiram entendê-la antes mesmo que ela pudesse se entender plenamente. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSsubGwrs3NmsWK3lZ-cfad_NBdfqEFfz0oIh4cAdV3hxIhuDrOlCScMLoq-lCTXjM8Fuvjo9OUWu4_MHrFPN0P3KSFtitd9kTtjj-VakLBBHQpjOmV8eUJWl76t0U1q5ZHubt9SxpNZ8/s1365/rebecca-bunch-crazy-ex-girlfriend-temporada-4-final.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="763" data-original-width="1365" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSsubGwrs3NmsWK3lZ-cfad_NBdfqEFfz0oIh4cAdV3hxIhuDrOlCScMLoq-lCTXjM8Fuvjo9OUWu4_MHrFPN0P3KSFtitd9kTtjj-VakLBBHQpjOmV8eUJWl76t0U1q5ZHubt9SxpNZ8/s16000/rebecca-bunch-crazy-ex-girlfriend-temporada-4-final.png" /></a></div>
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Muitos dizem que o amor é a resposta e conquista tudo. Greg diz isso a Rebecca em <i>“<a href="https://www.youtube.com/watch?v=dw9j1aK8plM" target="_blank">I Hate Everything But You</a>“</i> e, por muito tempo, ela acredita nesse clichê que nos empurram desde que somos crianças. Mas o amor não é a resposta para nos sentirmos completas, para sermos pessoas independentes e capazes de estar em um relacionamento. Até porque o relacionamento mais importante que temos é aquele que desenvolvemos com nós mesmas. Somos levadas a acreditarmos que só estaremos completas quando encontrarmos a Pessoa Certa, mas e se não existir uma? E se só existirem escolhas que nos levam para caminhos diferentes? Está tudo bem ser assim, Rebecca aprendeu isso ao ponto de rejeitar seus três pretendentes, mesmo quando Greg lhe pergunta se realmente precisa fazer todo esse trabalho de recuperação de si mesma sozinha. Ela precisava. Nós precisamos. Relacionamentos são maravilhosos, mas não somos nada se nos sustentarmos apenas em nossos parceiros amorosos. Nas palavras da própria Rebecca no último episódio da série, <i>“o amor romântico não é um final, mas apenas parte da sua história”</i>. A pergunta que permeou toda a metade da quarta temporada, “quem vai ficar com Rebecca Bunch?”, perdeu totalmente seu sentido, pois quem ficaria com ela é ela mesma. Ao encontrar a si e dar voz a seus sonhos, medos e desejos através da música, Rebecca encontrou também a felicidade que precisava para ser inteira e poder ter um recomeço, agora consciente de que é uma pessoa com problemas, como todo mundo, mas que está apta a lidar com eles. Para Rebecca, é assim que a felicidade se parece.</div>
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Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-4985472700674701762021-01-15T08:00:00.004-03:002021-01-15T12:43:20.189-03:00Ubik: os limites da realidade de Philip K. Dick <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwk8pcrfyAkyNMQhwTbKKroxnnEHANpXMo73P4dNWEefbD2smruZG2KOzLFG8RCmUafnhMDQ-qaik8jgZNMayG6OaYUQzK26Z8gPvTbqUWu2YxA04cTETBiBRy3hPwV81cmCCEi2Vh33E/s1800/ubik+philip+k+dick2.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwk8pcrfyAkyNMQhwTbKKroxnnEHANpXMo73P4dNWEefbD2smruZG2KOzLFG8RCmUafnhMDQ-qaik8jgZNMayG6OaYUQzK26Z8gPvTbqUWu2YxA04cTETBiBRy3hPwV81cmCCEi2Vh33E/s16000/ubik+philip+k+dick2.png" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">
É praticamente impossível ser um leitor de ficção científica e não conhecer <b>Philip K. Dick</b>. Para isso, há um motivo. O autor estadunidense, nascido em 1928, estava longe de ser uma pessoa comum. A forma como pensava o futuro e mesclava suas dúvidas espirituais com enredos onde a realidade é extremamente subjetiva, sem comprometer o enredo de suas histórias para isso, é algo raro. Em seus livros, encontramos mundos paralelos com tempos alternativos, personagens à deriva e questões filosóficas a serem urgentemente solucionadas. Mas essa urgência, não importa o quão impositiva, sempre acaba dando lugar a maiores questionamentos e exige paciência — uma virtude que nem o próprio PKD, nem seus personagens, tinham. Em <i><b>Ubik</b></i> isso não é diferente. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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O livro, publicado originalmente em 1969, é construído a partir da ideia de uma Nova York futurista, em 1992, onde a tecnologia modificou a organização social, diminuindo empregos normais, que ficaram a cargos de robôs (tema semelhante de seu outro livro, <i><b>Espere Agora Pelo Ano Passado</b></i>), e aumentando cargos relacionados à espionagem. É compreensível que PKD tivesse esse tema de forma muito forte em seus livros já que viveu durante as grandes guerras do século XX, quando a paranoia da caça a espiões rolava solta nos Estados Unidos. Por isso mesmo, é interessante perceber em sua obra como todo o avanço tecnológico, dos EUA e do mundo, das décadas futuras (hoje, nosso passado) ainda soa anacrônico. Em diversas passagens, destinadas a fazer o leitor sentir-se em um ambiente estranho, muitos móveis cotidianos não foram inovados para além de funcionarem apenas quando se paga uma moeda para utilizá-los, detalhe a que somos apresentados frequentemente na primeira metade do livro, seja para situar o leitor do final da década de sessenta de que aquela não é a sua época, seja para nos mostrar, sutilmente, coisas que dão errado quando a realidade começa a ruir — pequenos detalhes de objetos não funcionando mais de forma adequada, falhas na matrix. </div>
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Na Nova York dos anos noventa de PKD, algumas pessoas desenvolveram habilidades psíquicas. Essas pessoas, que podem ser talentos ou anti-talentos, trabalham em empresas de grande porte que distribuem um serviço a governos, entidades ou pessoas físicas poderosas — um serviço caríssimo que custa mão de obra psicológica: a interferência na realidade. Geralmente, tal interferência se dá apenas por meio de telepatas, que são infiltrados em lugares para coletar informações sigilosas. Entretanto, também há os precogs, pessoas que conseguem visualizar o futuro — apesar de não conseguirem modificá-lo. Em contrapartida, existem os anti-talentos, bloqueadores naturais de telepatas e precogs. É com eles que Runciter trabalha. </div>
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Existem dois personagens principais em <i><b>Ubik</b></i>: Glen Runciter, dono de uma das maiores empresas de anti-telepatia, e Joe Chip, testador de veracidade de dons para a empresa e braço-direito de Runciter. As vidas deles mudam drasticamente quando a empresa de Runciter é contratada para ir até à Lua, com onze de seus melhores inerciais e uma anti-precog desconhecida chamada Pat que, através de uma manipulação temporal, consegue o emprego sem ter de passar por grandes testes.</div>
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<br /></div>
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A princípio, desconfiamos de Pat e de suas intenções. A jovem mulher sem passado e extremamente talentosa é retratada como vilã desde as primeiras páginas. É um tanto desconcertante que uma das únicas mulheres do livro — e certamente a única com destaque — vista uma máscara de vilã aos olhos daqueles grandes homens de negócios. Tal traço não é característico da obra de P.K.D. Embora, em sua vida pessoal, ele não tenha sido um pró-feminista, chegando ao ponto de envolver-se em um caso de agressão à mulheres, seus livros possuem personagens femininas bem trabalhadas que fogem aos estereótipos da época em que foram escritos. Em <i><b>Ubik</b></i>, porém, não é isso o que acontece. Entretanto, conforme vamos adentrando no universo alternativo de PKD, passamos a enxergar Pat com outros olhos. Ela, assim como todo aquele grupo de anti-talentos, estão em uma emboscada cuja escapatória não é suficientemente clara para ninguém. </div>
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<br /></div>
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Quando chegam a Luna (o que entendemos como a nossa Lua), tudo parece estranho. A missão, completamente confidencial e de caráter urgente, não se apresenta da forma como foi combinada. E, após poucos minutos de conversa e apresentações, uma bomba explode, causando uma grande confusão. Em meio a fumaça e estilhaços, o grupo de onze anti-talentos e Joe Chip, o testador, se reencontram, incrivelmente inteiros, mas se deparam com seu chefe, Runciter, no chão. Ele fora atingido de alguma forma durante a explosão e está a minutos de perder a vida. O grupo corre contra o tempo para voltar à nave antes que o coração de Runciter pare de bater. Mas eles sabem que, em tais condições, não haverá salvação para ele — ao menos, não por meios naturais. Então, ele é colocado em uma bolsa térmica, com o intuito de preservar seu corpo e um mínimo de atividade cerebral, de modo que ele pudesse entrar em meia-vida. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4brCH9ZlmGCYjHHG_O7lMy6KbzGz84ENX4Um8O7qlM09cXgePPVoyJm-wpSXwaAn2Pvn-1Q3c428NlVLIANeZESXQIecnG-DHK5QkQgttfFJPb8Gxpbi2hqk1wPXLCe1G-dSeqLH9m3I/s1024/ubik-philip-k-dick.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="512" data-original-width="1024" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4brCH9ZlmGCYjHHG_O7lMy6KbzGz84ENX4Um8O7qlM09cXgePPVoyJm-wpSXwaAn2Pvn-1Q3c428NlVLIANeZESXQIecnG-DHK5QkQgttfFJPb8Gxpbi2hqk1wPXLCe1G-dSeqLH9m3I/s16000/ubik-philip-k-dick.png" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
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No universo de <i><b>Ubik</b></i>, pessoas ricas mantêm seus mortos em moratórios, empresas que conservam o recém-morto em um estado chamado de meia-vida. Nesse estado, seus corpos continuam em caixões, mas eles não entram em putrefação e, apesar de não se mexerem, suas ondas cerebrais remanescentes são preservadas, de modo que é possível travar uma comunicação com eles através de um aparelho especial. Como meias-vidas, eles não podem fazer muito além de atender aos pedidos de conversa de seus entes queridos. </div>
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A ideia inicial de Joe Chip era a de colocar o corpo de seu patrão, Runciter, em meia-vida, para que ele pudesse continuar administrando a empresa e sendo o mais próximo amigo de Chip. Mas as coisas logo saem do controle quando, apesar de inicialmente tudo estar em perfeito estado para que Runciter possa tomar seu lugar como um meia-vida funcional, os especialistas do Moratório Entes Queridos, para onde foi levado, na Suíça, simplesmente não conseguem contatá-lo em seus vestígios de consciência. Desesperado e disposto a tudo para prolongar a vida de seu patrão, Chip não consegue pensar direito e decide passar a noite ali, num hotel em Zurique, antes de viajar de volta aos Estados Unidos para tomar posse da direção da empresa e comunicar oficialmente a morte de Runciter. </div>
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No entanto, as coisas saem completamente do controle quando, na manhã seguinte, ele acorda em seu quarto de hotel e, ao pegar o telefone para ligar a um colega da empresa, ouve claramente a voz de Runciter. O patrão morto parece estar em um monólogo fantástico onde fala sobre os acontecimentos que o levaram a óbito. A conexão macabra deixa Chip atordoado, mas ninguém pode escutá-la além dele — para os outros, tudo o que existe é estática no aparelho telefônico. A partir daí, tudo começa a parecer surreal: as comidas estragam em segundos, os aparelhos eletrônicos tornam-se décadas ultrapassados num piscar de olhos, moedas em circulação assumem contornos estranhos e são rejeitadas pelo comércio e mensagens de Runciter começam a surgir nos mais improváveis lugares. </div>
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A realidade se desfaz e refaz aos olhos de Joe Chip. Em dado momento, ele está tomando um café quando percebe que o creme está azedo e o café, bolorento. Gravadores de áudio se tornam obsoletos, mesmo aqueles comprados diretamente da loja, novos. Elevadores modernos passam, em uma fração de segundo, a ser aqueles do início do século passado, de ferro e com um ascensorista vestido a caráter. Nada mais faz sentido naquele mundo e, então, enquanto Chip e Al Hammond tentam descobrir o que está acontecendo, as pessoas do grupo original vão morrendo dissecadas, tornando-se apenas matéria ossificada há anos, como se o tempo tivesse se acelerado. Eles começam a correr contra o tempo, sem saber para onde ir, e é nesse momento que a manifestação mais forte e reveladora de Runciter aparece. Na parede do banheiro masculino, surge uma pichação: </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><b><i><span style="font-size: x-large;">“Apoiem-se no vaso para mergulhar em seguida.</span></i></b></div><div style="text-align: center;"><b><i><span style="font-size: x-large;">Todos vocês estão mortos. Eu tenho vida.” </span></i></b></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O choque que essa pichação causa em Chip e Al é perceptível. Ambos congelam, sem saber o que fazer, enquanto Al começa a definhar cada vez mais rápido, indo de encontro à morte — ou o que quer que esteja acontecendo naquele universo alternativo. É singular a forma como PKD consegue nos fazer sentir o que seus personagens estão sentindo. Completamente à deriva num mundo estranho e, ao mesmo tempo, conhecido, em <i><b>Ubik</b></i> seus personagens vivenciam o próprio conceito freudiano do <i>uncanny</i> (ou o infamiliar) na pele. E nós, enquanto leitores, podemos também sentir o estranhamento daquela situação, ao mesmo tempo em que nos indagamos se não perdemos uma parte da história, uma parte chave que solucionaria tudo. Quando PKD escrevia seus livros, forçando os limites da realidade de seus personagens, ele também forçava os limites da percepção em seus leitores. É impossível ler uma obra como <i><b>Ubik</b></i> e não se questionar até que ponto o que vivemos é real ou fruto de algo maior — ou de alguém. </div>
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Após uma peregrinação de uma semana, Joe Chip finalmente descobre que, de fato, todos eles estão mortos. Nem ele, nem seu grupo viveram após a explosão da bomba. Somente Runciter vive, do outro lado, tentando entrar em contato com eles através do Moratório. Todos são, cada um à sua medida, meias-vidas. É chocante perceber que a narrativa de um livro inteiro se passa em um não-lugar, em um ponto que não existe — ou talvez exista apenas dentro da consciência remanescente de cada meia-vida daquele moratório. </div>
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Em <i><b>Ubik</b></i>, PKD levanta mais fortemente seus questionamentos filosóficos sobre os limites entre a vida e a morte, o que é a realidade e por que aceitamos o que vivenciamos como algo real em termos físicos. O livro completou cinquenta anos de lançamento em 2019 e, olhando em retrospecto para a cultura pop, podemos ver claramente como ele inspirou diversas obras. A série <i><b>Lost</b></i>, por exemplo, bebeu diretamente da fonte de <i><b>Ubik</b></i>, com personagens em uma busca diária pela saída de um local que só existia em outro plano e do qual eles se livrariam apenas através da morte metafórica. Em produções mais recentes, podemos traçar paralelos entre <i><b>The Good Place</b></i> e a obra de PKD. Apesar de a série ser uma espécie de sitcom, distante do tom de aventura e drama dos livros do autor, ela lida diretamente com as questões dos limites da realidade, vida após a morte, consciência humana e a filosofia sobre os mistérios do universo. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><i><b><span style="font-size: x-large;">“Aonde quer que você e os outros do grupo fossem, eu construía uma realidade tangível que correspondia às suas expectativas mínimas. Quando você veio de Nova York para cá, criei centenas de quilômetros de regiões rurais, cidade por cidade, achei muito cansativo.” </span></b></i></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Recentemente, <a href="https://exame.abril.com.br/tecnologia/estamos-vivendo-em-uma-simulacao-cientista-do-mit-diz-que-sim/" target="_blank">um cientista do MIT</a> afirmou que podemos estar vivendo numa simulação de realidade virtual. De acordo com ele, <i>“A verdade é que há muito que nós simplesmente não entendemos sobre a nossa própria realidade, e eu acho que é mais provável que nós estejamos em algum tipo de universo simulado”</i>. Ainda que tal hipótese não tenha sido provada, existe pelo menos uma equipe trabalhando para que testes sejam iniciados logo. É possível que estejamos vivendo em um simulacro? Sim, é possível, até mesmo provável. Mas não sabemos ao certo como isso acontece e quem criou o simulacro. Entretanto, podemos dizer que o que vivenciamos não é real? Se tal teoria for comprovada, diremos que nossas vidas não são reais? Nós vivemos, de qualquer forma. Tais conflitos, que podem ser os nossos daqui a alguns anos, estão presentes na obra de PKD. </div>
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E, assim como os cientistas que defendem essa hipótese afirmam, em <i><b>Ubik</b></i> não existe uma resposta final e simples, como um deus que criou tudo e a tudo controla. Pode bem ser que as leis universais tenham sido jogadas em um programa de computador que gerou uma existência independente, com regras próprias. Pode existir um agente manipulador, mas ele apenas consegue interferir na realidade, não comandá-la, porque ele mesmo está sujeito às leis universais. No entanto, no livro, apesar de não existir um desfecho redondo, com uma resposta definitiva, existe um princípio de algo ligado à espiritualidade que poderia estar por trás de tudo. Esse algo é o próprio <i><b>Ubik</b></i>, palavra derivada de ubiquidade, ou seja, onipresença. <i><b>Ubik</b></i> está em tudo e é tudo, mas não é, necessariamente, um deus. É um conceito que não podemos compreender ao certo, apesar de se assimilar com o que conhecemos por Criador. Pode ser a própria matéria. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><span style="font-size: x-large;"><i><b>“Eu sou Ubik. Antes que o universo fosse, eu sou. Eu fiz os sóis. Eu fiz os mundos. Eu criei as vidas e os lugares que elas habitam. Eu as transfiro para cá, eu as ponho ali. Elas seguem minhas ordens, fazem o que mando. Eu sou o verbo e meu nome nunca é dito, o nome que ninguém conhece. Eu sou chamado de Ubik, mas este não é o meu nome. Eu sou. Eu Sempre serei.”</b></i> </span></div><div style="text-align: justify;"><i><b><br /></b></i></div><div style="text-align: justify;"><i><b>Ubik</b></i> nos traz mais perguntas do que respostas, terminando com todas as certezas de seus personagens no chão. A vida, a realidade, tudo é questionável no universo de Philip K. Dick. A teologia em suas obras é filosófica e oriental, sutil, mas poderosa. O final, com a moeda nos fazendo questionar a realidade junto com Runciter, se assemelha ao final de <i><b>A Origem</b></i>: estamos realmente aqui ou estamos em mais uma realidade simulada? A verdadeira questão, no entanto, é outra: isso importa? </div>
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1dcyMJBx5Uv0oTfcFfh3619o1wZM8ZjBfPVDhX_M3i0rxfH4TdjPTvvmEETPbidue1ZAUe46JmyBzgPsTiZqcMojkG9LoiNbVOsLd5njp2216L32fvbyNCJ6gvTGa8EmLKa3fwn5AQME/s700/ubik+philip+k+dick.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="700" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1dcyMJBx5Uv0oTfcFfh3619o1wZM8ZjBfPVDhX_M3i0rxfH4TdjPTvvmEETPbidue1ZAUe46JmyBzgPsTiZqcMojkG9LoiNbVOsLd5njp2216L32fvbyNCJ6gvTGa8EmLKa3fwn5AQME/s16000/ubik+philip+k+dick.png" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div>
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Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-43160363290596182892021-01-13T22:42:00.003-03:002022-06-10T03:11:38.612-03:00Escondida no jardim secreto <p style="text-align: justify;">Desde o início da pandemia, a vida mudou de uma forma ansiosa e desesperada, trazendo muitas coisas ruins e noites mal dormidas. Do ano passado, com a ameaça da pandemia, até a certeza de uma nova realidade, perdi a vontade de fazer muitas coisas que amo porque, no meio de grandes acontecimentos históricos, todo o resto parece pequeno. Apenas mais ou menos na metade de 2020 consegui começar a retomar minhas atividades e voltar a fazer as coisas que me fazem bem, como ler.</p><p style="text-align: justify;">A ideia de inaugurar um clube do livro veio muito desse sentimento de impotência mediante à realidade e do desejo de fazer algo em conjunto, algo sobre o qual possamos conversar e compartilhar sentimentos que não envolvam a pandemia. Por isso, não é nenhum espanto que o primeiro livro escolhido tenha sido <i><b>O Jardim Secreto</b></i>, um clássico infantil cuja adaptação cinematográfica marcou o crescimento de muitas de nós. Nunca havia lido o livro, sequer lembrava da história, mas, embora a dificuldade de concentração até mesmo para ler fosse uma realidade, eu sabia que esse livro me faria bem. É meio como quando você está se sentindo triste e toma sorvete para passar. Seu problema não vai sumir por causa do sorvete mas, por um momento, as coisas parecerão mais suportáveis e bonitas. Existem lugares confortáveis pra onde vamos quando estamos numa situação difícil. Pode ser uma comida preferida, um filme, uma lembrança ou, no meu caso, a literatura. Ler <i><b>O Jardim Secreto</b></i> foi me sentir abraçada pelo mundo encantado de Mary, Dickon e Colin. Um conto de fadas moderno às vezes é tudo de que precisamos para lembrarmos de que isso vai passar e de que ainda há vida lá fora. <i><b>"Eu tenho certeza de que existe mágica em tudo e que nós é que não sabemos tirar proveito dela."</b></i> Eu também tenho.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhw6mecoqTsiH2KKr14bzwznSG5y6BC2kifebMzmjWY7BV6JLPgK_QDNbT1McIws0VdCSmPRdUTdwytpLA-9rOKzQaDhQtTZoovVEVLS2QgcVAErOgylu9XK3b0Zc-27WcIEswPzfar-tY/s700/o+jardim+secreto+filme+1993.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="700" data-original-width="455" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhw6mecoqTsiH2KKr14bzwznSG5y6BC2kifebMzmjWY7BV6JLPgK_QDNbT1McIws0VdCSmPRdUTdwytpLA-9rOKzQaDhQtTZoovVEVLS2QgcVAErOgylu9XK3b0Zc-27WcIEswPzfar-tY/s16000/o+jardim+secreto+filme+1993.jpg" /></a></div><p style="text-align: justify;">Meses após ter feito a leitura, o livro de <b>Frances Hodgson Burnett</b> permanece na minha mente. Eu <a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/04/o-jardim-secreto-de-frances-hodgson.html" target="_blank">já escrevi sobre ele</a>, mas sinto a necessidade de voltar e falar um pouco mais sobre essa obra e sobre o jardim, o gótico e o crescer. </p><p style="text-align: justify;">Ao mergulhar no universo de Mary Lennox, a protagonista do livro, aproveitei para voltar à minha própria infância e reassistir ao filme homônimo, lançado em 1993. Tenho algumas lembranças do filme, de tardes sentada no sofá, assistindo a história de Mary e me encantando com as suas descobertas no jardim. O que eu não lembrava, todavia, era que o filme é extremamente sombrio. A atmosfera gótica que paira sobre ele é bem séria e pesada, considerando que trata-se de um filme destinado ao público infantil. E, ainda que o final seja bonito, a trajetória pode ser até mesmo assustadora. </p><p style="text-align: justify;">Mary chega à mansão de seu tipo após perder os pais numa epidemia. A mansão possui cem quartos, todos trancados - com exceção dos poucos usados pela criadagem da casa, pelo tio e o que será usado por ela. Tudo naquela casa, desde a charneca até os retratos de antepassados da família pendurados nos longos e escuros corredores grita gótico. Inclusive a própria protagonista. Mary é sisuda, fechada, atormentada por si mesma e pela falta de amor em sua vida. Aos dez anos, ela nunca recebeu atenção ou cuidado real - nem mesmo de seus pais. Uma criança criada dentro de casa, que não pegava sol, não brincava, não fazia nada além de ordenar coisas e sentir-se entediada. Nem mesmo a morte a comove. A ideia de fantasmas tampouco. Mary tornou-se indiferente a tudo e a todos. Mas, ao encontrar um ambiente tão sinistro que lhe incita a ir para fora, pois nada poderia ser pior do que ficar dentro daquela casa o tempo inteiro, é que ela começa a interessar-se por algo. </p><p style="text-align: justify;">Eu também fui uma criança criada em casa. Sair para brincar estava totalmente fora de cogitação e cresci lendo muitos livros, observando o meu quarto, arrumando coisas para fazer num espaço restrito. Foi também um jardim que me tirou para fora de casa. Nos mudamos para um local com um jardim enorme - e lá plantei árvores, flores, fiz uma horta, tínhamos até um poço. Eu ainda não podia sair, mas nem precisava, pois meu mundo todo girava naquele entorno. </p><p style="text-align: justify;">2020 pareceu muito com a minha infância. Trancada em casa, proibida de sair para fora do portão, mas rodeada por um jardim e por meus livros. Não posso dizer que foi ruim. No entanto, talvez tenha sido um pouco demais todas as partes góticas e sombrias de <i style="font-weight: bold;">O Jardim Secreto</i>. A pandemia. Pessoas morrendo. O medo. A sensação de torpor mediante a vida. Uma casa escura, repleta de corredores e quartos e portas trancadas, que range durante a noite. Foram muitos os dias em que me senti como o primo de Mary, Colin, em cima da cama, com medo de abrir a janela, longe da luz do sol. </p><p style="text-align: justify;">Talvez o que eu mais goste em <i style="font-weight: bold;">O Jardim Secreto</i> é que Mary não sai de casa para encontrar coisas boas. O máximo que ela faz é ir até o pátio e fazer uma hortinha, cuidar de umas flores. O jardim é seu esconderijo - mas um esconderijo não precisa, necessariamente, ser sombrio e repleto de medo. Podemos crescer em lugares assim. </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirTJHuIZOOzT4JfH2aLeBqR6grN3KuUhZz1ZX_yUG5E2s6LUZJt1snAjqcpGlRzmX5ccPjcUb_9xZh2c68dNYQreJrq-L9zAvL62DN_dhlmieAIcBzLAw1ba0T7K2rUHAa8kTJl0EK8C4/s700/o+jardim+secreto.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="700" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirTJHuIZOOzT4JfH2aLeBqR6grN3KuUhZz1ZX_yUG5E2s6LUZJt1snAjqcpGlRzmX5ccPjcUb_9xZh2c68dNYQreJrq-L9zAvL62DN_dhlmieAIcBzLAw1ba0T7K2rUHAa8kTJl0EK8C4/s16000/o+jardim+secreto.png" /></a></div>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-31846259827683765372021-01-01T23:48:00.007-03:002022-06-10T03:11:27.674-03:00Retrospectiva literária 2020 <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjWANxUg-FxE3fbrLu0ueP3vLY1rguauFp6zBxKuPeXopKsYB15TjhoYfXc4DGTaov6V2yrdBV5kxxZg9vSGZzxv7eTduULH1uVG3GSaHzf6RU9T23yWKCPZVvwGfBmvXQGXTTDTTEgslk/s1800/melhores-livros-2020-mia-sodr%25C3%25A9.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1000" data-original-width="1800" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjWANxUg-FxE3fbrLu0ueP3vLY1rguauFp6zBxKuPeXopKsYB15TjhoYfXc4DGTaov6V2yrdBV5kxxZg9vSGZzxv7eTduULH1uVG3GSaHzf6RU9T23yWKCPZVvwGfBmvXQGXTTDTTEgslk/s16000/melhores-livros-2020-mia-sodr%25C3%25A9.png" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">Eu não forcei leituras em 2020. Vários livros foram abandonados, alguns eu simplesmente deixei para terminar depois, cada um a seu tempo. Com toda essa angústia da pandemia, houve meses em que li muito e meses em que li nada. E tudo bem. Mas 2020 foi um ano repleto de boas leituras. Ao todo, foram 54 livros lidos - um lido duas vezes (<i>A outra volta do parafuso</i>, do Henry James) -, e alguns que estão pela metade. O ano foi bem ruinzinho, mas os livros foram ótimos. </p><h2 style="text-align: center;">Lidos em 2020</h2><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><i>Metrópolis • After I do • <a href="https://deliriumnerd.com/2020/01/21/mulherzinhas-resenha-louisa-may-alcott/" target="_blank">Mulherzinhas</a> • Pessoas normais • <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/10/a-outra-volta-do-parafuso.html" target="_blank">A volta do parafuso</a> • The huntress • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/12/passeando-na-austenlandia.html" target="_blank">Austenlândia</a> • Conversas entre amigos • Ubik • Objetos sobrenaturais • <a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/08/por-lugares-incriveis.html" target="_blank">Por lugares incríveis</a> • A vida secreta dos escritores • Imunidade • O vampiro • <a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/04/o-jardim-secreto-de-frances-hodgson.html" target="_blank">O jardim secreto</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/06/such-fun-age.html" target="_blank">Such a fun age</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/04/os-testamentos-de-margaret-atwood.html" target="_blank">Os testamentos</a> • Morte no verão • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/07/emma-obra-prima-de-jane-austen.html" target="_blank">Emma</a> • Frida Kahlo e as cores da vida • Assassinato no campo de golfe • Decameron - 10 novelas selecionadas • Modern love • O rinoceronte • Those who wish me dead • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/07/a-historia-secreta.html" target="_blank">A história secreta</a> • O médico e o monstro • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/12/sempre-vivemos-no-castelo-shirley-jackson.html" target="_blank">Sempre vivemos no castelo</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/08/o-morro-dos-ventos-uivantes-um-romance.html" target="_blank">O Morro dos Ventos Uivantes</a> • Kindred • Contos de fantasmas • Long bright river • Libertação • <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/08/carmilla.html" target="_blank">Carmilla, a vampira de Karnstein</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/08/a-sucessora-de-carolina-nabuco.html" target="_blank">A sucessora</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/09/the-book-of-longings.html" target="_blank">The book of longings</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/09/sol-da-meia-noite-de-stephenie-meyer.html" target="_blank">Sol da meia-noite</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/09/o-ano-do-pensamento-magico.html" target="_blank">O ano do pensamento mágico</a> • <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/09/mary-ventura-e-o-nono-reino.html" target="_blank">Mary Ventura e o Nono Reino</a> • <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/11/este-lado-do-paraiso.html" target="_blank">Este lado do paraíso</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/10/monster-she-wrote.html" target="_blank">Monster, she wrote</a> • The one hundred years of Lenni and Margot • A volta do parafuso • <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/10/vitorianas-macabras.html" target="_blank">Vitorianas macabras</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/11/visitando-casa-da-colina.html" target="_blank">A assombração da Casa da Colina</a> • Os contos de Beedle, o bardo • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/11/o-instituto-de-stephen-king.html" target="_blank">O instituto</a> • Transformando garotas em monstros • <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/11/a-filha-de-rappaccini.html" target="_blank">A filha de Rappaccini</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/12/o-talentoso-ripley-de-patricia-highsmith.html" target="_blank">O talentoso Ripley</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/12/passeando-na-austenlandia.html" target="_blank">Meia-noite na Austenlândia</a> • <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/12/vida-e-aventuras-do-papai-noel-l-frank-baum.html" target="_blank">Vida e aventuras do Papai Noel</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/12/um-conto-de-natal-de-charles-dickens.html" target="_blank">Um conto de Natal</a> • <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/12/a-casa-assombrada-de-john-boyne.html" target="_blank">A casa assombrada</a> • The midnight library</i></div><br />Seguindo a <a href="https://www.nacabeceira.com.br/search/label/retrospectiva%20liter%C3%A1ria?max-results=12" target="_blank">tradição dos anos anteriores</a>, vamos às categorias:<br /><br /><h2 style="text-align: center;">Maior livro </h2><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><i>Sol da meia-noite</i>, de Stephenie Meyer, com 727 páginas. </div><div style="text-align: center;"><br /></div><h2 style="text-align: center;">Menor livro </h2><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><i>Mary Ventura e o Nono Reino</i>, de Sylvia Plath, com 48 páginas. </div><div style="text-align: center;"><br /></div><h2 style="text-align: center;">Melhores do ano </h2><div style="text-align: center;"><div class="separator" style="clear: both;"><div class="separator" style="clear: both;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgrHHvhVkr_gah36EhwMhHjVSRpzVf1DD8boi0goL_RmnfwX4o_5iqbXPFRZzlThaKmBtNfU-mVT5L1qTAs9zx11hSDwywZqs-chKRmKQWyh6f1dUbG46vuMwFryP6yEGfU1tmkzvGlk9g/s1300/melhores-livros-2020.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="1300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgrHHvhVkr_gah36EhwMhHjVSRpzVf1DD8boi0goL_RmnfwX4o_5iqbXPFRZzlThaKmBtNfU-mVT5L1qTAs9zx11hSDwywZqs-chKRmKQWyh6f1dUbG46vuMwFryP6yEGfU1tmkzvGlk9g/s16000/melhores-livros-2020.png" /></a></div><i><br /></i></div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/07/emma-obra-prima-de-jane-austen.html" target="_blank">Emma</a></b></i>, de Jane Austen</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/07/a-historia-secreta.html" target="_blank">A história secreta</a></b></i>, de Donna Tartt</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/09/the-book-of-longings.html" target="_blank">The book of longings</a></b></i>, de Sue Monk Kidd</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b>Ubik</b></i>, de Philip K. Dick</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/04/o-jardim-secreto-de-frances-hodgson.html" target="_blank">O jardim secreto</a></b></i>, de Frances Hodgson Burnett</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/12/sempre-vivemos-no-castelo-shirley-jackson.html" target="_blank">Sempre vivemos no castelo</a></b></i>, de Shirley Jackson</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/09/sol-da-meia-noite-de-stephenie-meyer.html" target="_blank">Sol da meia-noite</a></b></i>, de Stephenie Meyer</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="https://www.queridoclassico.com/2020/10/vitorianas-macabras.html" target="_blank">Vitorianas macabras</a></b></i>, de várias autoras</div><div class="separator" style="clear: both;"><i style="font-weight: bold;">The midnight library</i>, de Matt Haig</div><div class="separator" style="clear: both;"><i><b><a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/06/such-fun-age.html" target="_blank">Such a fun age</a></b></i>, de Kiley Reid</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div></div></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkVat76bcDUqX0LAg9jYxxpDo3brsJtQrDBxWZmjsb7z7SoGPV5aRAOOU954A-wlEemR5Obi7dtdK5LTnVj8mwdaDTnmQwg8p5ARlK1B7oBloFWx54srnqpNpVB7pxcttq-UKRSa8wipE/s1300/melhores-livros-20201.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="1300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkVat76bcDUqX0LAg9jYxxpDo3brsJtQrDBxWZmjsb7z7SoGPV5aRAOOU954A-wlEemR5Obi7dtdK5LTnVj8mwdaDTnmQwg8p5ARlK1B7oBloFWx54srnqpNpVB7pxcttq-UKRSa8wipE/s16000/melhores-livros-20201.png" /></a></div><div style="text-align: center;"><br /></div><h2 style="text-align: center;">Melhores releituras </h2><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Reli <i style="font-weight: bold;">O Morro dos Ventos Uivantes</i>, da Emily Brontë, <a href="http://www.nacabeceira.com.br/2020/07/lendo-o-morro-dos-ventos-uivantes.html" target="_blank">durante um ciclone</a>. Foi uma experiência incrível. Se já amava o livro, passei a gostar mais ainda dele. Também reli <i style="font-weight: bold;">A Assombração da Casa da Colina</i>, da Shirley Jackson, e <a href="https://www.queridoclassico.com/2020/11/a-assombracao-da-casa-da-colina-podcast.html" target="_blank">foi simplesmente perfeito</a>.</div><div style="text-align: center;"><br /></div><h2 style="text-align: center;">Quote preferido </h2><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><i>“Beleza é terror. O que chamamos de belo nos faz tremer.”</i> </div><div style="text-align: center;"><span style="font-size: x-small;">(DONNA TARTT, A História Secreta)</span> </div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Me acompanhe no <a href="https://www.goodreads.com/user/show/57588640-mia" target="_blank">Goodreads</a> e no <a href="https://www.skoob.com.br/usuario/391432" target="_blank">Skoob</a> ♥</div>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-86905669003515378172020-12-29T11:32:00.002-03:002022-06-10T03:11:45.249-03:00A casa assombrada, de John Boyne <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0LLfdQe4gK8ei35X-utEnlr8QNE5M3UhcMAlW0W1HRtN_Ia-f-B6kZeaXc0yznVQWJD60NX9Ny8f65ak0DuIuJLzQg7fsg6vbd6GrKQowJO0YrppkyjQd30NgRejIesVUk2GCZvX7y0k/s1200/a-casa-assombrada-john-boyne.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="808" data-original-width="1200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0LLfdQe4gK8ei35X-utEnlr8QNE5M3UhcMAlW0W1HRtN_Ia-f-B6kZeaXc0yznVQWJD60NX9Ny8f65ak0DuIuJLzQg7fsg6vbd6GrKQowJO0YrppkyjQd30NgRejIesVUk2GCZvX7y0k/s16000/a-casa-assombrada-john-boyne.png" /></a></div><p style="text-align: justify;">Eu amo histórias góticas. Se contar com um enredo envolvendo fantasmas, então, já fico animada. Portanto, não foi por acaso que peguei <b style="font-style: italic;">A casa assombrada</b>, do <b>John Boyne</b>, pra ler. Lembro que a primeira coisa que me chamou a atenção nele foi a capa. Eu estava passando na frente de uma livraria quando o vi e fiquei pensando que queria demais ler aquele livro. Mas isso já faz uns bons anos. Só agora, entretanto, com o exemplar que a Companhia das Letras me enviou, pude lê-lo. </p><p style="text-align: justify;">Eliza Caine é uma jovem de 21 anos que mora em Londres com o pai. Os primeiros capítulos do livro são destinados a apresentar a vida da protagonista, que trabalha como professora em uma escola para meninas e passa o tempo livre junto do pai, um entomologista. Certo dia, seu pai insiste em ir até uma apresentação de leitura pública de Charles Dickens, um dos maiores escritores da era vitoriana. Dickens costumava fazer essas leituras de seus livros e contos, reunindo grandes multidões, e o pai de Eliza fica eufórico com a ideia de poder estar perto de seu escritor preferido. Mas o tempo com neve e frio faz com que ele adoeça e morra, deixando Eliza sozinha no mundo. Ela logo lê um anúncio num jornal pedindo por uma governanta em Norwich, Norfolk, no interior da Inglaterra. O ano é 1867 e Eliza não tem ninguém no mundo, então decide largar seu emprego na escola e partir no próximo trem, em busca de uma nova vida. </p><p style="text-align: justify;">Esse início extremamente melancólico logo é transformado numa narrativa de mistério no momento em que Eliza chega à mansão onde deverá trabalhar. Gaudlin Hall é uma casa muito antiga, que data do século XVII e já recebeu o próprio rei da Inglaterra. No entanto, embora imponente, a casa parece abandonada. Eliza não sabe de nada dos patrões ou de por quantas crianças será responsável. Ela só sabe que está lá e tem uma função a desempenhar. </p><p style="text-align: justify;">Isabella, uma menina de treze anos, a recebe, junto de Eustace, seu irmão mais novo. Mas são apenas eles e Eliza na casa, mais ninguém. Não há nenhum adulto para recepcioná-la, ninguém que lhe explique as regras do local, que lhe apresente a antiga mansão. Eliza Caine está sozinha com duas crianças numa casa estranha. É uma situação no mínimo intrigante. </p><p style="text-align: justify;">Conforme o tempo vai passando, Eliza percebe que há algo de muito errado com aquele local. Isabella é uma criança estranha, que fala como uma adulta e consegue deixar qualquer um desconfortável. Eustace, ainda que querido, parece estar sempre sendo reprimido por algo ou alguém. Fora isso, há acontecimentos simplesmente inexplicáveis que só podem remeter a algo sobrenatural. </p><p style="text-align: center;"><b><i><span style="font-size: x-large;">"Fiquei parada, com o coração acelerado. Não tinha sido minha imaginação. Duas mãos tinham agarrado meus tornozelos e me puxado - eu ainda podia senti-las."</span></i></b></p><p style="text-align: justify;">Como disse anteriormente, eu amo histórias góticas, ainda mais quando elas possuem elementos sobrenaturais. O terror é uma zona de conforto para mim e gosto demais de livros que se passam no século XIX - então, quando uma obra reúne essas duas coisas, me sinto automaticamente atraída por ela. Mas vamos começar dizendo que, embora muito se tenha falado sobre esse livro ser gótico, ele não se encaixa direito no subgênero. <i style="font-weight: bold;">A casa assombrada</i> possui alguns tropos góticos, mas eles não são o suficiente para que possamos colocá-lo na prateleira de romances desse tipo. Não é porque há muita névoa, uma mansão, crianças assustadoras e um mistério que o livro é gótico. </p><p style="text-align: justify;">Sobrou, então, o tema <i>terror</i>. Ele é de terror? Bem, ele tem vários elementos do gênero, então sim. E, <a href="https://www.frightlikeagirl.com.br/2020/09/talvez-funcao-dessa-obra-de-terror-nao.html" target="_blank">embora o terror não precise assustar</a>, é um pouco decepcionante a forma como ele é tedioso nesse livro. É tudo muito clichê. E, geralmente, eu não me importo com clichês. Até porque, ao meu ver, o autor tentou fazer uma homenagem a grandes clássicos do terror, como <i style="font-weight: bold;">A Outra Volta do Parafuso</i>, <i style="font-weight: bold;">A Assombração da Casa da Colina</i> e <i style="font-weight: bold;">Rebecca</i> (da <a href="https://twitter.com/queridoclassico/status/1291781246981464065" target="_blank">plagiadora Daphné Du Maurier</a>). Durante toda a história, além das diversas menções a obras de Charles Dickens, temos uma estrutura que costura partes dos livros mencionados. Mas isso é feito de forma a forçar uma história que não parece se encaixar ali. Talvez se o autor tivesse deixado os clássicos de lado e focado em criar algo sem grandes inspirações, poderia ter ficado melhor. Já li outros livros de John Boyne e gosto bastante da escrita dele. Mas ela não funciona direito nesse livro. </p><p style="text-align: justify;">O que acabou me prendendo à trama, portanto, foi a vontade de entender o que estava acontecendo. Quando passei a encarar o livro como um mistério sobrenatural - sem esperar grandes coisas dele -, a leitura fluiu melhor. Existem tantos elementos e personagens com histórias à parte que fiquei me perguntando qual era o objetivo do autor e em qual daquelas linhas eu deveria focar a minha atenção. </p><p style="text-align: justify;">Além disso, a impressão que fica é a de que John Boyne nunca escreveu personagens femininas, pois são todas tão caricatas que revirei os olhos diversas vezes durante a leitura. Eliza, que está há uma semana de luto pelo pai, passa a viagem inteira até Norwich pensando em como o homem sentado próximo dela é bonito e como seria estar com ele. Então, ela desce do trem e é salva por outro homem, a quem também imagina de maneira romântica. E isso acontece durante o livro inteiro, com praticamente todos os homens a quem encontra. Eliza é escrita como uma mulher que só pensa em homens, cujas motivações para existir, trabalhar, cuidar das crianças da casa e desvendar o mistério da mansão são fracas. Conforme lia, me perguntava várias vezes quem, afinal, é Eliza Caine? </p><p style="text-align: justify;">O autor também parece ter escolhido a dedo um dos piores tropos da literatura gótica clássica: a do vilão estrangeiro, preferencialmente de países católicos ou com línguas derivadas do latim. Colocar como vilã o espírito de uma mulher espanhola, estrangeira naquele país, que supostamente enlouqueceu após ter filhos, é, no mínimo, problemático. Mais ainda quando averiguamos a explicação que o autor nos fornece: Santina tornou-se uma mulher louca, assassina e vingativa porque fora estuprada pelo pai e pelo tio durante a infância. E, para salientar que isso faz sentido, há diálogos inteiros nos quais personagens conversam sobre como uma mulher jamais poderia recuperar-se de um trauma desses. Não consigo nem começar a explicar o quão errada tal linha de pensamento é. </p><p style="text-align: center;"><b><span style="font-size: x-large;"><i>"todos nós simplesmente nos acostumamos ao fato de haver uma louca morando em Gaudlin Hall."</i></span></b></p><p style="text-align: justify;">Além disso, temos o tropo da mulher louca do sótão subvertido em algo que só posso definir como estranho. No entanto, ele é subvertido entre aspas, já que a própria Isabella acaba assumindo a posição estereotipada. E, embora haja livros interessantes que contenham tal ideia, não sei se ela cabe mais em obras produzidas no século XXI - ou, ao menos, não da maneira como John Boyne o fez. </p><p style="text-align: justify;">O final é decepcionante em todos os níveis. Só consigo compará-lo ao final de qualquer temporada de <i>Pretty Little Liars</i> - o que não é uma comparação muito gentil. Parece que Boyne decidiu deixar um cliffanger ali - para quê, não sabemos. Mas, antes disso, já estava ruim. Não há muita lógica dentro das escolhas das personagens. Seus comportamentos não batem com o que nos foi apresentado durante toda a trama. É frustrante. </p><p style="text-align: justify;">O <a href="https://www.irishtimes.com/culture/books/this-house-is-haunted-by-john-boyne-1.1402681 " target="_blank">Irish Times apontou</a> que a obra pode tratar-se de uma visão mais humorística do romance gótico, algo aos moldes de Jane Austen em <i style="font-weight: bold;">A Abadia de Northanger</i>. O raciocínio segue, dizendo que, justamente por isso, <i style="font-weight: bold;">A casa assombrada</i> pode ser mais acessível para jovens leitores do que os romances clássicos, servindo como porta de entrada. Mas não sei se acredito isso. Particularmente, acho que é mais fácil alguém, que nunca leu um clássico gótico na vida, pegar esse livro e fugir do gênero para sempre. </p><p style="text-align: justify;">Porém, há quem goste. A cada livro, seu leitor. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPVYZTQflnVknNbAcpoH32GGhczGs_yjKKyoBoBr8CodmWISY-EtPAGcDMymYYS6Yuw4hHlOb1D_n7eYHJ42tPfAW4EyBXWTIgEfWvCSci2fIq1HS448LJdb2HUtnEQLCPUHwGFBWqhpo/s700/a+casa+assombrada+john+boyne.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="700" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPVYZTQflnVknNbAcpoH32GGhczGs_yjKKyoBoBr8CodmWISY-EtPAGcDMymYYS6Yuw4hHlOb1D_n7eYHJ42tPfAW4EyBXWTIgEfWvCSci2fIq1HS448LJdb2HUtnEQLCPUHwGFBWqhpo/s16000/a+casa+assombrada+john+boyne.png" /></a></div>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-25486041641983635922020-11-23T10:44:00.003-03:002021-03-29T18:13:26.784-03:00Permitindo o nada <table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJWIUFAlDHIjyZqLMJ4xw-s0c-aYbrpR5Ea0tcY54bGyUKGQcrGhO_4HUe_9nQL7lumKkFiL248qBKdB9txlm2nXtARebK2mNIwRpQMJbhtFV3sYF-SGc9Bgw-gyxYenLxfylg5sIqihk/s959/the-favourite-john-william-godward.png" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="779" data-original-width="959" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJWIUFAlDHIjyZqLMJ4xw-s0c-aYbrpR5Ea0tcY54bGyUKGQcrGhO_4HUe_9nQL7lumKkFiL248qBKdB9txlm2nXtARebK2mNIwRpQMJbhtFV3sYF-SGc9Bgw-gyxYenLxfylg5sIqihk/s16000/the-favourite-john-william-godward.png" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>The favourite</i>, de John William Godward (1901)</td></tr></tbody></table><p style="text-align: justify;">Aceitar que eu sou uma pessoa só e não consigo fazer tudo talvez seja o meu maior desafio. Poderia facilmente ser chamada de workaholic, embora eu acho que o mais adequado seria dizer que eu sou simplesmente uma pessoa que gosta de estudar, aprender e fazer coisas novas. Mas quando estamos inseridos numa sociedade onde precisamos ser produtivos o tempo inteiro, a aprendizagem se torna utilitária e o tempo vira escasso, pois é moeda. O fazer nada, no sentido de fazer algo que não vá necessariamente nos gerar uma renda, parece risível, perda de tempo. No entanto, não é apenas importante como necessário. </p><p style="text-align: justify;">Faz alguns meses que estou lendo <i style="font-weight: bold;">How to do nothing: resisting the attention economy</i>, da Jenny Odell. A leitura está demorada porque ultimamente tenho lido bem devagar. Leio alguns capítulos, paro, reflito, faço anotações, deixo a leitura descansar e me dou tempo para pensar no que li e fazer conexões com a minha realidade. Essa postura, embora tenha tudo a ver com o livro, não vem dele. É algo que adotei como regra faz algum tempo. Não apressar os processos, curtir a jornada, me permitir ler com calma, assistir tranquilamente, escrever em meu próprio tempo. </p><p style="text-align: justify;">Durante a faculdade, estudei bastante sobre a economia da atenção. O fenômeno é algo bem preocupante porque, de uma maneira ou de outra, todos nós estamos inseridos nele - e não há muito o que fazer a respeito. Tomar consciência das nossas ações e de como lidamos com o tempo e interagimos com o mundo é um passo, mas é difícil se desconectar do automático de verdade e viver plenamente, com a atenção real em tudo o que fazemos, uma coisa de cada vez. </p><p style="text-align: justify;">Antes de trocar para o jornalismo, quando eu ainda estava na pedagogia, conheci Jorge Larrosa Bondía, um teórico da filosofia da educação. Seu artigo <i>Notas sobre a experiência e o saber da experiência</i> é o meu preferido dentre todos que já li. Volta e meia abro o arquivo, releio, marco passagens e reflito sobre o que significam aquelas palavras. O artigo originalmente era um discurso, proferido em 2001, e é assustador pensar que faz quase vinte anos que ele foi escrito e ainda é tão real. Nele, Larrosa Bondía afirma que vivemos numa sociedade da informação, mas não da experiência.</p><h2 style="text-align: center;"><i>“o sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de ‘sabedoria’, mas no sentido de ‘estar informado’), o que consegue é que nada lhe aconteça”</i></h2><p style="text-align: justify;">Conversando com a <a href="https://marinafranconeti.com/" target="_blank">Marina</a>, descobri que por algum motivo ambas temos tido encontros com a figura do rato, seja na vida real, em sonhos ou em filmes, livros e séries. Começamos a tentar compreender se existe algo por trás do rato que não estávamos percebendo. Para começar, estamos no ano do rato. Além do óbvio, que é a forma como o rato é o animal que inicia o calendário chinês, podendo indicar, assim, que este foi/está sendo um ano de começos em alguma esfera, também trata-se de ajustar o pensamento e a ação, saber adaptar-se. Mas o rato está presente em outro símbolo que me chamou atenção. Ganesha, o deus da sabedoria e da abundância no hinduísmo, cavalga um rato. Na história que explica por que ele está associado ao rato, somos ensinados sobre a importância do autocontrole sobre a dispersão. O rato é ambicioso e inquieto, enquanto Ganesha representa sabedoria e paciência. A lentidão necessária para viver uma experiência concreta. </p><p style="text-align: justify;">Dia desses, sonhei que um rato fugia de mim. Eu corria e corria, ele também, mas logo parava, sentava no chão e me encarava, debochado. No sonho, eu não media distâncias para ir atrás dele. Mas o que esse rato significava? E por que eu permitia que seu deboche me afetasse? </p><p style="text-align: justify;">Na outra parte do sonho, eu deixava o rato correndo em seu jogo sádico sozinho e aceitava o desafio da serpente, que surgiu em meu caminho para que eu aprendesse a ser mais como ela, me arrastando no chão junto a ela e a comendo no final para que eu pudesse <i>ser</i> como a serpente. Foi um pouco perturbador, mas parecia fazer sentido dentro daquela fábula. </p><p style="text-align: justify;">Se formos seguir pelo caminho do hinduísmo para interpretar a serpente do sonho, chegaremos a Ananta, a serpente mitológica que simboliza a eternidade e a ausência de tempo. É <a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/09/o-ano-do-pensamento-magico.html" target="_blank">o tempo sem tempo novamente</a> batendo à minha porta, sendo o grande tema dos meus pensamentos. É o permitir-se viver num estado de tempo sem tempo, sem pressa, sem a correria para fazer tudo ontem, ler tudo, escrever tudo, saber tudo, estudar tudo, falar com todos, estar sempre disponível. É a sabedoria da serpente, que permanece firme no chão, ainda que todos corram. </p><h2 style="text-align: center;"><i>“Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo.”</i></h2><p style="text-align: justify;">Ano passado, li um livro que tornou-se um favorito. <i style="font-weight: bold;">O dia em que Selma sonhou com um ocapi</i>, da Mariana Leky, possui uma história simples, com ares de realismo mágico, que me conquistou por ser bonito e também por ser justamente tudo o que eu precisava em um livro naquele momento. Numa cidadezinha, todo mundo sabe que cada vez que Selma sonha com um ocapi, alguém morre dentro de vinte e quatro horas. E, embora a rigidez dessa regra paire como uma lâmina sobre as cabeças dos moradores locais, eles seguem vivendo suas vidas como se nada estivesse acontecendo, porque não há como parar o tempo ou mandar nas leis do universo. Tem coisa que a gente só aceita. </p><p style="text-align: justify;">Ainda que esse ponto da trama seja importante na história, ele não é central. Após certo acontecimento, alguns anos passam e conhecemos melhor a neta de Selma, agora uma jovem mulher que vive sua vida tranquilamente na cidadezinha. Até que conhece um monge budista, por quem se apaixona. </p><p style="text-align: justify;">Eu não gosto de romances no sentido histórias de amor. Não sou uma pessoa romântica e costumo ignorar casais na ficção. Mas a jovem e o monge budista permaneceram na minha mente porque seu desenvolvimento é real e saudável. Para além disso, eles representam algo na trama, seu relacionamento não existe apenas porque sim, há um sentido por trás de suas ações. Ali estão duas pessoas que tecnicamente não deveriam ficar juntas, mas que se permitem viver o tempo, um dia de cada vez, sem afundarem-se em angústias românticas sobre tudo o que devem fazer antes que ele tenha de partir, sobre decisões urgentes e uma correria que não dará em nada e só trará frustração. A doutrina budista se faz presente no livro todo, em todas as personagens, ainda que de formas diferentes para cada uma. Não de uma forma religiosa ou doutrinária, mas apenas no sentido de ter calma, olhar com atenção, estar presente no presente, fazer uma coisa de cada vez. Porém, é neles que temos a expressão mais clara de como esse correr infinitamente atrás de um rato que tudo quer fazer, a todos os lugares quer ir e a tudo se ajusta é loucura. O tempo não nos pede essa pressa, somos nós quem a estipulamos e nos destruímos no processo. Fazer as pazes com as nossas limitações é o objetivo, não transformarmo-nos em super-humanos, quase um maquinário, sempre correndo, sempre querendo mais, fazendo o lazer ser trabalho. </p><p style="text-align: justify;">Pode ser difícil, mas é necessário. Num mundo de ritmo acelerado, precisamos encontrar refúgios. </p><p style="text-align: justify;">Ser produtivo não é apenas fazer coisas novas ou estar sempre ocupado, mas manter funcionando aquilo que já existe. Fazer o reparo, ajustar as pontas, cuidar de si mesmo, olhar para dentro. Permitir-se parar pode ser a coisa mais importante que você vai fazer. </p><p style="text-align: justify;"></p><h2 style="text-align: center;"><i>"Numa situação onde todo momento no qual estamos acordados se tornou parte do tempo em que produzimos nosso sustento, quando submetemos até o nosso lazer para avaliação numérica via likes do Facebook e Instagram, verificando constantemente seu desempenho como alguém que checa um estoque, monitorando o andamento do desenvolvimento da nossa marca pessoal, o tempo se torna um recurso econômico que não podemos mais justificar gastar em 'nada'."</i></h2><div style="text-align: center;"><span style="font-size: medium;"><i>(Jenny Odell, How to do nothing - tradução livre)</i></span></div><br /><hr /><br /><p></p><p style="text-align: justify;">Este texto foi escrito para o <b>Estação Blogagem</b>, uma iniciativa da Gabi e da Aline para agitar a blogosfera. </p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaor4iMdVPvGiI17fLk3I8v6MQHNuODLG4pQ4t1c51OoZntqtowXa0B5DS5tzpLFaJkRa-eS2Qe8YQ4SX0TfkYGOfIn2_LTmtWnW00Kx5CQE_liaDHNzxFVSLl_g5dgX3TvYQXEB2itjc/s600/estacao-blogagem-banner-3.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="600" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaor4iMdVPvGiI17fLk3I8v6MQHNuODLG4pQ4t1c51OoZntqtowXa0B5DS5tzpLFaJkRa-eS2Qe8YQ4SX0TfkYGOfIn2_LTmtWnW00Kx5CQE_liaDHNzxFVSLl_g5dgX3TvYQXEB2itjc/s16000/estacao-blogagem-banner-3.png" /></a></div><p style="text-align: justify;"><br style="text-align: left;" /><b style="text-align: left;">tema de 15 a 21.11: ouros</b></p><p></p><p style="text-align: justify;">Terra, trabalho, dinheiro, produtividade, o suor do rosto: cabe muita coisa dentro do baú do naipe de ouros. O que acontece se você jogar essa riqueza na escrita? Publique no seu blog e participe da blogagem coletiva: #estacaoblogagem.</p>Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7127454340333851085.post-43484452144055506642020-11-18T16:08:00.006-03:002021-01-14T03:48:44.519-03:00Meu ano de descanso e relaxamento, de Ottessa Moshfegh <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhucLOZSnKGCDmEo-yOaFjBOAFGtEfB-lNrQVvp71QoA9ykAULMiSMDjvwJL9skwjhL4A1jSc1m9UC7LUjj_UF9-a9MkF_OAK0Lf6oEdjxg5Kg4vJF3T_YHbdlL2oX_UqXUlIDOEeWfm5I/s1080/meu-ano-de-descanso-e-relaxamento-otessa-moshfegh.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="530" data-original-width="1080" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhucLOZSnKGCDmEo-yOaFjBOAFGtEfB-lNrQVvp71QoA9ykAULMiSMDjvwJL9skwjhL4A1jSc1m9UC7LUjj_UF9-a9MkF_OAK0Lf6oEdjxg5Kg4vJF3T_YHbdlL2oX_UqXUlIDOEeWfm5I/s16000/meu-ano-de-descanso-e-relaxamento-otessa-moshfegh.png" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;">O sono é o seu superpoder — ao menos é isso o que o cientista do sono Matt Walker afirmou em <a href="https://www.ted.com/talks/matt_walker_sleep_is_your_superpower?language=pt-br" target="_blank">uma palestra para o TED Talk</a>. A palestra, que dura cerca de vinte minutos, afirma categoricamente que o sono não serve apenas para o descanso, mas literalmente pode significar a diferença entre a vida e a morte. Quando dormimos as oito horas recomendadas por noite, o corpo age naturalmente e as defesas do organismo trabalham bem. Sete horas de sono já são um risco à saúde. Seis, nem se fala. Conforme vamos perdendo o sono para compensar o trabalho acumulado, por exemplo, também vamos jogando fora a nossa saúde mental e anos de vida. Dormir é o superpoder que o ser humano possui, mas não usa corretamente. No entanto, a narradora de <b><i>Meu Ano de Descanso e Relaxamento</i></b> sabe muito bem disso e abusa: seu plano é dormir por um ano inteiro, hibernar para curar feridas dentro de si. </div>
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A premissa do lançamento da autora norte-americana <b>Ottessa Moshfegh</b> pode parecer chocante, mas faz sentido. Dormir, de fato, ajuda em muita coisa. Contudo, o que a protagonista desse livro tão contemporâneo faz não é simplesmente dormir, mas se entregar a uma série de remédios controlados com o objetivo de permanecer dopada a ponto de não sentir mais nada. A narradora é uma jovem de vinte e seis anos que aparentemente possui tudo para ser feliz: é o padrão de beleza em pessoa, loira, alta, olhos claros e magérrima, herdou uma fortuna tão grande dos pais que não precisa trabalhar para se sustentar e é formada em História da Arte, área na qual possui contatos suficientes para se fazer conhecida. Porém, isso não vale de nada para ela. A depressão que a acompanha faz com que tudo pareça sem graça. </div>
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Não conseguindo lidar com o mundo que a cerca e achando tudo sem sentido, a narradora sem nome começa a usar seu horário de almoço no trabalho em uma galeria de arte de Nova York para se enfiar em um armário e dormir. Quando finalmente perde o emprego simplesmente por não se importar com o trabalho e por mal conseguir se manter acordada, ela resolve tirar um ano para descansar. Para tal, procura por uma psiquiatra nas páginas amarelas da lista telefônica, com quem passa a ter consultas mensais que se resumem a perguntas de praxe, de cujas respostas a psiquiatra nunca lembra, e receitas de medicamentos controlados indicados para insônia, depressão, ansiedade e outros problemas psicológicos, todos destinados a fazer a narradora dormir constantemente. Algumas drogas são inventadas, como o Infermiterol, que a faz apagar por três dias em um estado de não-consciência ativa, andando pela cidade e fazendo coisas das quais não lembra, mas cujas marcas a assombram ao despertar. Outras existem e são muito comuns: lítio, Lorax, Stilnox, Gardenal, Donaren. Não são poucas as pessoas que as tomam, especialmente quando paramos para olhar os dados: <a href="https://g1.globo.com/bemestar/noticia/depressao-cresce-no-mundo-segundo-oms-brasil-tem-maior-prevalencia-da-america-latina.ghtml" target="_blank">de acordo com a OMS</a>, a depressão afeta 322 milhões de pessoas no mundo. Se essa é a nossa realidade de agora, no entanto, a história do livro se passa no ano 2000, quando o que sabíamos sobre depressão ainda não era tão estruturado e havia uma verdadeira epidemia nos EUA de remédios antidepressivos para curar tudo. </div>
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É difícil gostar da narradora. Ela tem tudo: dinheiro, padrão de beleza e liberdade, mas não consegue transformar nada em algo positivo. Além disso, possui uma verdadeira aversão por pessoas, é irresponsável, não consegue retribuir sentimentos e não conserva laços com ninguém, nem com Reva, sua melhor amiga e a única pessoa que realmente se preocupa com ela. Porém, Reva também é detestável. Extremamente fútil e gordofóbica, ela gosta da amiga, mas ao mesmo tempo não consegue lidar com o sentimento de que ela deveria estar no lugar da outra, já que saberia valorizar as facilidades que a narradora possui. </div>
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De certa forma, Otessa Moshfegh segue a tradição iniciada por <b>Emily Brontë</b> na literatura ocidental com seu <b><i><a href="https://www.nacabeceira.com.br/2020/08/o-morro-dos-ventos-uivantes-um-romance.html" target="_blank">O Morro dos Ventos Uivantes</a></i></b> ao escrever personagens horríveis como protagonistas, especialmente mulheres. Assim como o filho único da irmã Brontë mais famosa, o que torna o livro de Moshfegh tão atrativo é o fato de todos os personagens ali descritos, desde a narradora e protagonista até Ping Xi, o artista underground que a ajuda a se manter em um estado de sono quase ininterrupto, são pessoas horríveis. E, portanto, factíveis. Ninguém é bonzinho na vida real. Podemos ser legais com as pessoas de quem gostamos e até nos esforçarmos para não fazer mal aos outros, mas todos possuímos um lado sombrio do qual não nos orgulhamos. Ler <b><i>Meu Ano de Descanso e Relaxamento</i></b> é também uma experiência de autodescoberta. São tantas as nuances problemáticas de personalidade ali descritas que é quase impossível para o leitor não se identificar com alguma delas. </div>
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Otessa Moshfegh gosta de escrever mulheres difíceis, até mesmo repulsivas. Como já deixou bem claro em seus outros livros, ela não quer escrever mulheres queridas, educadas e exemplares. Emily Brontë já fazia isso no século XIX, mas personagens carismáticas e com dotes de mocinha transbordam na literatura, o que pode ser interessante, mas certamente não corresponde à realidade. Mulheres reais também podem ser repulsivas em certos aspectos. E escrever personagens que não correspondem a um padrão de feminilidade imposto durante séculos é uma forma de rebelião. Assim como é rebelde a narradora, que simplesmente larga tudo e vai dormir. </div>
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Claro que aí entra o fator econômico. Ela dorme durante um ano porque pode fazer isso. Rica, herdeira, sem necessidade de trabalhar para se sustentar. Sob tais condições, é fácil simplesmente se dedicar à cura interna através do sono. Quase nenhuma de nós pode se dar a esse luxo, e é aí que entra Reva, a melhor amiga da narradora riquíssima e sonolenta. Reva é de família pobre, se esforçou muito para estar adequada ao padrão de beleza exigido naquele meio cultural da Nova York do ano 2000, mas sente certa raiva da amiga por vê-la desperdiçando tudo o que tem, se afundando em drogas para dormir e não cuidando de sua saúde, mental ou física. Reva também possui transtornos psicológicos, mas não tem tempo ou dinheiro para lidar com isso, já que precisa trabalhar para sobreviver e pagar o aluguel do apartamento minúsculo em que mora, tudo isso tendo de se esforçar arduamente para manter-se na moda, pois as pessoas de seu círculo certamente são do tipo que julgam outras apenas pela aparência. Ninguém é perfeito, nem mesmo as personagens com as quais mais podemos nos identificar. </div>
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Ao contrário do que acontece em outras obras que tratam sobre a depressão feminina, como <b><i>As Virgens Suicidas</i></b>, o livro de Otessa Moshfegh não romantiza a tristeza feminina. Não há nada de bonito ou poético em estar triste e querer dormir o dia inteiro. Também ao contrário das narrativas clássicas de depressão feminina na literatura, como <b><i>A Redoma de Vidro</i></b>, a narradora do livro não pretende se suicidar. Por vezes assombrada pelo suicídio da mãe, que sofria de depressão e vivia dopada por todos os tipos de remédios que pudesse encontrar — caminho também percorrido pela filha —, há uma aproximação entre elas no pós-morte quando a filha se dá conta do porquê a mãe passava o dia inteiro sob a influência de remédios que a deixavam desligada. Desligar-se pode ser a única solução que se tem às vezes para sobreviver em um mundo que não parece lhe acolher. No entanto, a narradora quer sobreviver. O suicídio, apesar de presente na história, não é o objetivo da personagem. Há uma mudança de narrativa sobre como encaramos a depressão atualmente aqui. Existem alternativas — ao menos quando você tem condições financeiras para isso, como é o caso da narradora. Infelizmente, nem todas temos as condições para lidar com nossa tristeza de forma a renascer melhor quando o processo estiver no fim. O autocuidado também é uma questão de classe. </div>
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<h2 style="text-align: center;"><i>
“’Nasci no privilégio’, eu disse. ‘Não vou jogar isso fora, não sou idiota.’”</i></h2>
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<div style="text-align: justify;">Se o objetivo da psicoterapia é fazer com que a pessoa consiga lidar com seu sofrimento e se compreender melhor, não é essa a prática presente no livro. A narradora vai direto para uma psiquiatra, encontrada aleatoriamente nas páginas amarelas da lista telefônica, que descuidadamente lhe entope com remédios para dormir. Não há uma verificação, uma conversa real, nem um esboço de psicoterapia. A narradora simplesmente vai lá, explica que não consegue dormir e ganha diversas receitas de remédios que lhe provocarão o sono. É absurdo, e certamente não é a forma correta de elaborar um problema como a depressão. Apesar de parecer tentador, especialmente nos tempos em que estamos vivendo, quando cada olhadela nas notícias pode nos fazer querer morrer por angústia, desespero e medo do que está acontecendo com o país, se entupir de remédios e dormir indefinidamente não é a solução. Mas, para a narradora, é uma ferramenta de sobrevivência. </div>
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<h2 style="text-align: center;"><i>
“Não que eu estivesse me suicidando. Na verdade era o oposto de um suicídio. Minha hibernação era uma medida de autopreservação. Eu achava que aquilo salvaria minha vida.” </i></h2>
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Tomar remédios para dormir por um ano inteiro é uma forma de se alienar do mundo e de si mesma. Mas usar as redes sociais constantemente, muitas vezes passando horas e horas assistindo a vídeos de filhotes de animais, também não pode ser considerada uma forma de alienação? Para Moshfegh, a alienação hoje em dia não está tanto no abuso de remédios para transtornos psiquiátricos, mas na forma como lidamos com a internet. Em <a href="https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/24/cultura/1564000241_780465.html" target="_blank">entrevista</a>, a autora disse que: <i>“Acho que nos últimos 18 anos a tecnologia mudou as maneiras em que nos relacionamos com a realidade. Acho que é fácil olhar o atual presidente e culpá-lo dessa espécie de piada que sentimos que vivemos a nível cultural. Mas nós também temos certa parte de responsabilidade do ponto em que chegamos. Todo mundo passa o dia na internet. Essa foi a mudança mais profunda e a maior alienação que vivemos”</i>. Contudo, apesar de haver verdade na fala de Moshfegh, não podemos abraçar uma perspectiva fatalista e deixar de lado o fato de que terapia é algo dispendioso e muitas vezes só o que temos é o que a internet pode nos oferecer para nos distrairmos de um mundo que parece desabar sobre nossas cabeças. Ainda bem que existem paliativos. </div>
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<h2 style="text-align: center;"><i>
“Enfim fazia algo que importava. O sono parecia produtivo. Algo estava sendo resolvido. No fundo do coração, eu sabia — talvez essa fosse a única coisa que meu coração sabia naquela época — que assim que eu tivesse dormido o suficiente ficaria bem. Eu me renovaria, renasceria. Seria uma pessoa totalmente nova, cada uma das minhas células se regeneraria a tal ponto que as antigas pareceriam memórias distantes encobertas pela névoa. Minha vida passada seria apenas um sonho, e eu poderia começar de novo sem arrependimentos, amparada pela felicidade e pela serenidade que teria acumulado em meu ano de descanso e relaxamento.” </i></h2>
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Um romance sobre uma mulher de vinte e poucos anos que se dopa até chegar ao ponto da hibernação fazer sucesso num mercado editorial que passa por um momento difícil não é algo que podemos deixar passar. É, antes de tudo, um alerta. O que nos chama atenção em um livro desses? Toda a arte é produto de seu tempo, e apesar do livro se passar no ano 2000, há um diálogo intenso a respeito de como lidamos com nossas depressões. Muitas vezes substituímos os antidepressivos por horas na internet ou fazendo maratona na Netflix, mas embora a forma de alívio possa variar, o desejo é o mesmo: afundar em um esquecimento momentâneo para não pensar no presente, para não sentir o passado. </div>
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O escritor italiano <b>Italo Calvino</b> encerra um de seus mais célebres livro, <b><i>As Cidades Invisíveis</i></b>, com a seguinte citação: <i>“O inferno dos vivos não é algo que será, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”</i>. A primeira maneira de não sofrer, de acordo com o autor, é se misturar ao inferno. A segunda é se alienando. A forma escolhida para a alienação difere. Pode ser através de música, literatura, cinema, jogos, redes sociais ou mesmo o sono, mas o objetivo é o mesmo: escapar do inferno, seja ele psicológico ou político. Sem uma dose de alienação é quase impossível sobreviver.</div>
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Embora ela se aliene a ponto de conseguir escapar do que a cerca, em um ato desesperado na crença de uma cura psicológica, não há redenção para a protagonista. Ela passa por esse ano de hibernação razoavelmente incólume, mas apesar de sentir que houve uma mudança em sua personalidade, tal transformação não é real, já que nada mais a comove, nem mesmo a morte de uma amiga. Ela embotou os sentidos e agora vive para ignorar a vida e emoldurar a arte. Não é o que estamos fazendo, afinal de contas? </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxMtPbDSDzWNhmTg6aYL2AdQArPKUlNOtD4VTGZszaKrbzAPnnxAbGDHpr2w6OlF9ETtuI3nKaK7E8gtIGxHUh29csebFnLWYQItFV_tNHUq5gVjdjlpqfQjEuzjiFDPQMZjFd2PJViUs/s121/4+estrelas.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="41" data-original-width="121" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxMtPbDSDzWNhmTg6aYL2AdQArPKUlNOtD4VTGZszaKrbzAPnnxAbGDHpr2w6OlF9ETtuI3nKaK7E8gtIGxHUh29csebFnLWYQItFV_tNHUq5gVjdjlpqfQjEuzjiFDPQMZjFd2PJViUs/s0/4+estrelas.png" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><b>Se interessou pelo livro? <i><a href="https://amzn.to/2IFpq6F" target="_blank">Você pode comprá-lo utilizando meu link associado da Amazon clicando aqui!</a></i></b></div>
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Mia Sodréhttp://www.blogger.com/profile/01705387728135294533noreply@blogger.com1