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“a thing of beauty is a joy forever”

A beleza e o terror de perder o controle

Acabei de ler um livro que me fez companhia por várias semanas: A História Secreta, de Donna Tartt. Quem me acompanha no instagram provavelmente viu o quão obcecada eu fiquei por ele. Mesmo dentre as diversas leituras que estava fazendo, ele se destacou. Embora eu o estivesse lendo há semanas, a história era tão boa que só havia lido alguns capítulos, parando de quando em quando para refletir sobre o que a autora falava e sobre seus personagens, tão complexos e misteriosos. Até que decidi que finalizaria a leitura, pois queria mergulhar de vez naquela história, e li cerca de 400 páginas em um dia e meio. Nenhum dos outros livros que li naquela semana me impactaram tanto assim. Trata-se de uma tragédia. No GoodReads, o livro é descrito da seguinte maneira: "Sob a influência de seu carismático professor de clássicos, um grupo de desajustados, inteligentes e excêntricos alunos, em uma faculdade de elite da Nova Inglaterra, descobre uma maneira de pensar e viver que está a mundos de distância da monótona existência de seus contemporâneos. Mas, quando vão além dos limites da moralidade normal, passam gradualmente da obsessão à corrupção e traição e, finalmente - inexoravelmente - ao mal". De fato, o resumo não está errado, mas o livro é muito mais do que isso. É sobre seis alunos de uma classe muito seleta, de grego, que estudam os clássicos, mas eles o fazem como se estivessem vivendo nos tempos anteriores a Alexandre, o Grande, de certa forma, pois decidem mergulhar profundamente em alguns ritos gregos da época. Então, o que acontece é que eles começam a se tornar os personagens trágicos de suas próprias vidas, como em um jogo grego de moralidade e decadência. É honestamente bonito.

"A morte é a Mãe da Beleza", Henry disse.
"E o que é a beleza?"
"Terror."
"Muito bem", Julian disse. "A beleza é raramente suave ou reconfortante. Pelo contrário. A verdadeira beleza sempre nos assusta."
[...]
"E, se a beleza é terror", Julian disse, "o que é o desejo, então? Pensamos ter muitos desejos, mas no fundo temos apenas um. Qual seria?"
"Viver" Camilla disse.
"Viver para sempre", Bunny falou, o queixo apoiado nas mãos.


Algumas citações me fizeram pensar sobre a vida e a maneira como a encaramos. Quando eu era criança, era obcecada por mitologia grega. Eu li tudo em que pude colocar as minhas mãos sobre o assunto. Mais tarde, comecei a ler outras coisas, mas aquelas histórias de horror e beleza, de deuses e heróis trágicos, sempre ficaram comigo. Em uma certa parte do livro, é dito que:

"Trata-se de um conceito bem grego, e muito profundo. Beleza é terror. O que chamamos de belo provoca arrepios. E o que poderia ser mais aterrorizante e belo, para mentes como a dos gregos e a nossa, do que a perda total do controle?"

Eu estive pensando sobre essa citação desde que a li. Ela encontra-se no começo do livro, no primeiro capítulo, quando tudo ainda é misterioso e encantado de uma maneira sombria. A razão pela qual essa citação me fez pensar muito é porque (além de todas as coisas que aprendi sobre as tragédias gregas quando criança, aquelas coisas que ficaram comigo, que ajudaram a construir a pessoa que eu sou), desde o começo da pandemia, tenho lidado com algo que é ao mesmo tempo bonito e aterrorizante: a perda do controle. Desde que me lembro, sou uma pessoa organizada e controlada. Em minha memória de infância, recordo-me facilmente de momentos em que escrevia tudo o que pretendia fazer em cadernos, registrava pensamentos, colecionava citações de livros e fazia listas e listas de coisas que pretendia estudar ou escrever. Esses pequenos atos da memória são coisas que permaneceram comigo, que fazem parte da forma como lido com o tempo e os desejos até hoje. Não apenas isso: raramente faço algo que não planejei com antecedência. Não estar no controle do que está acontecendo ao meu redor me deixa ansiosa e, embora saiba que não posso controlar tudo, pelo menos tento controlar o que depende de mim, minha rotina, para obter alguma estabilidade em minha ansiedade. Mas a pandemia tirou meus planos do ar. Eu tinha planejado muitas coisas para este ano e todas elas se tornaram impraticáveis. Além disso, como se não bastasse perder completamente meu planejamento, também perdi o controle do que pode acontecer ao meu redor, porque agora tudo é instável e imprevisível. É estranho dizer isso, mas essa sempre foi uma ideia assustadora e atraente para mim: não ter controle.

"Não gostamos de admitir, porém a ideia de perder o controle fascina pessoas controladas como nós mais do que a maioria dos outros temas."

Lembro-me de poucos momentos da minha vida em que não estava no controle da situação, quando não sabia exatamente o que aconteceria. Não sou uma pessoa controladora para os outros, como as pessoas que moram comigo, amigos, família etc., mas sou assim para mim mesma, com muitas regras e planejamento e organização. É claro, existem razões para isso, sempre existem razões, mas é algo que faço para manter a ilusão de que está tudo bem porque, enquanto eu souber onde estou pisando, tudo está bem. Mas sempre imaginei como seria libertador se um dia as circunstâncias saíssem do controle e eu tivesse que viver um dia de cada vez, sem planejar. É uma ideia que me passa pela mente há muito tempo. Quando comecei a conhecer a filosofia budista, fiquei encantada especialmente com os conceitos de tempo e desejo deles; é algo que gostaria de vivenciar, mas senti que não o faria a não ser que fosse forçada a tal. No início da pandemia, fiquei muito assustada com isso. Contudo, estaria mentindo se dissesse que não enxerguei uma espécie de beleza por estar à mercê de um tempo sem tempo. Venho pensando a respeito dessas coisas desde o começo do ano, mas especialmente por causa de tudo o que estamos vivendo e também porque, ao ler o livro, tais pensamentos tomaram conta da minha mente de uma maneira que seria inevitável não debruçar-me sobre tais reflexões. Nisso, e sentindo meus sentimentos de vazio e falta de propósito, percebi algumas coisas.

Sim, me sinto muito sozinha, e esse poderia ser apontado como um motivo para pensar e sentir essas coisas. Mas a solidão nunca foi um problema. O problema reside em sentir-me solitária num momento em que o necessário é ter apoio para lidar com toda essa situação catastrófica. Porém, esses são sentimentos secundários que surgiram em um momento muito específico. Acredito que o que mais me leva a sentir emoções tão fortes, durante o inexorável agora, é essa completa reestruturação que um tempo sem tempo exige. Mesmo que isso me assuste, é libertador ser forçada a parar minha rotina louca, cheia de regras, e lidar comigo mesma. Claro, ainda preciso escrever e fazer o meu trabalho, mas tenho muito mais tempo para refletir sobre a vida e minhas escolhas do que antes. Minha rotina anterior não me permitia fazer isso - ao menos, não de maneira a realmente parar e focar meu olhar nesses sentimentos e em uma avaliação sincera, até mesmo cínica, do que estou fazendo. Eu saía de casa antes das 6 da manhã e voltava à 1 da manhã. Nunca dormi muito, durmo cerca de três horas por dia, quando durmo, de modo que isso não era um problema, mas vivia indo e voltando, entrevistando pessoas, escrevendo artigos e correndo por aí. Também nunca parei de escrever textos pessoais, mas acabei colocando muitas coisas de lado para me encaixar em um modelo social que não tem nada a ver comigo. De certa forma, porque desejava fugir de mim mesma e acreditei que enveredar pelo jornalismo me ajudaria a conseguir isso, a não ser mais tão voltada para a arte e usar meu amor pela escrita em algo mais possível.

Estava pensando sobre isso e como a coisa que mais me assustava também é a que eu mais queria. É estranho pensar que, embora eu goste do que faço, dediquei anos da minha vida ao jornalismo, sendo que aquilo que realmente importa para mim é algo fora do exercício jornalístico. Literatura, pintura, poesia, música, essas são as coisas que importam para mim. De certa forma, voltei a alguns hábitos adolescentes que me faziam tão bem, mas que abandonei para me tornar a adulta que achava que deveria ser. "Beleza é terror", disse Donna Tartt em seu livro, e sou obrigada a concordar. Há muitas maneiras de ver a beleza e, certamente, há coisas bonitas que não nos assustam, mas o conceito por trás do que ela fala (e sobre o qual constrói a narrativa do livro) é o conceito grego de beleza como tragédia ou, melhor dizendo, beleza como tentação. O que nos tenta geralmente tem ligação a algo que consideramos proibido, cujas consequências tememos, por um motivo ou outro. A tentação de perder o controle, para mim, é muito bonita e, portanto, terrível. Não sei exatamente o que vou fazer com isso, mas certamente não quero voltar ao mesmo ritmo que tinha antes, quando essa pandemia acabar. Quero me dedicar às coisas que amo, às coisas que me fazem sentir bem e que me fazem querer viver - que preenchem o vazio em mim. Mesmo que isso me assuste. Mas nem sempre isso é possível, especialmente para pessoas que não nasceram em famílias abastadas. Não é à toa, portanto, que o narrador de A História Secreta seja um jovem bolsista vivendo no meio de gente riquíssima, tentando se encaixar numa vida que não lhe pertence, mas a que ele almeja por ver nela uma escapatória da realidade. Ainda que tudo isso lhe assuste, especialmente quando fica ciente do mistério que cerca o grupo de grego, ele é irresistivelmente atraído para a situação, como se não houvesse possibilidade de dizer não ao envolvimento em algo que lhe encanta sem padecer das consequências que tudo aquilo acarretará.

"Beleza é terror. O que chamamos de belo nos faz tremer."

O retorno à adolescência e a proximidade com a morte - e, por consequência, a esses pensamentos sobre quem somos e o que deixamos de lado - sempre me remetem ao meu poeta brasileiro favorito, Carlos Drummond de Andrade. Especialmente sobre um poema que ele escreveu, após a Segunda Guerra Mundial, chamado "Congresso Internacional do Medo". Estou pensando nesse poema agora, porque é algo que poderia ter sido escrito em nossos tempos.

Não estamos vivendo em tempos de guerra, mas parece que sim. Há medo em todos os lugares, existem barreiras entre as pessoas, entre o nosso mundo e o mundo exterior. Há também esse sentimento de instabilidade que nos leva a comportamentos não convencionais. Não sei se todos estão passando por isso, mas tanto eu quanto muitos de meus amigos estamos voltando à adolescência, aos anos em que formamos nossas personas. Penso algumas coisas a respeito disso, pois é algo curioso, que me leva a querer, ao mesmo tempo, experienciar este momento que é tão único e tão banal na linha do tempo da história quanto analisá-lo sob o viés de uma pesquisadora que se debruça a tentar entender o espírito de seu tempo. Obviamente, não há como realmente saber a forma com que outras pessoas estão lidando com os nossos tempos, mas esse retorno ao tempo sem tempo parece ser uma coisa real. A adolescência é um tempo sem tempo.

Quando somos adolescentes, não temos muita consciência da própria mortalidade. Além disso, estamos descobrindo o mundo e investigando as coisas que chamam a nossa atenção, as coisas pelas quais vale a pena viver. É um pouco como aquele filme, Sociedade dos Poetas Mortos, quando o professor diz aos alunos que medicina, direito, engenharia, todas essas profissões são importantes na sociedade, mas arte, música, literatura, poesia, é por isso que vale a pena viver. De certa forma, acho que estamos percebendo isso. Como sobreviver sem arte? Parece-me que os momentos que mais valorizamos são contrapontos: a adolescência, com seu tempo sem tempo, sua completa falta de noção da própria mortalidade; e momentos como este, quando a mortalidade bate à porta diariamente para nos dizer: Memento Mori. Isso me lembra aquela música de Camille Saint-Saëns, "Danse Macabre". É uma das minhas músicas clássicas favoritas e, nesses tempos, eu a ouço quase diariamente. Nela, a história da dança da morte é contada. "Danse Macabre" foi escrita como homenagem ao poema de Henri Cazalis, em 1874. No poema, conhecemos uma lenda medieval que envolve a Morte surgindo na noite de Halloween para despertar os mortos de suas tumbas e dançar com eles até o amanhecer. Quando o dia clareia, os mortos retornam a seus túmulos até o próximo Halloween, quando a morte tocará novamente seu violino e dançará com eles. Mas a ideia da dança macabra vai além de tal imagem bela, sendo uma alegoria sobre a universalidade da morte. No poema, reis, rainhas, camponeses, todos dançam junto com a Morte na noite de Halloween. Não importa como alguém viveu, sua vida terminará no mesmo lugar, e a dança da Morte unirá a todos. É uma música muito alegre para um tema tão sombrio, e sempre me lembra da mortalidade e da importância de viver uma vida que nos encha de prazer. É claro que não é possível fazer isso o tempo todo, porque precisamos trabalhar e cumprir nossos compromissos adultos, mas se há uma coisa que a pandemia me levou a refletir é precisamente a importância de usar o tempo que temos nas coisas que nos fazem bem; isso nos eleva.


Conversei com alguns amigos sobre isso, sobre essas ideias, esse retorno ao que realmente amo e ao que me faz sentir bem. É interessante como todos me responderam que também estão sentindo as mesmas coisas. Uma amiga minha, por exemplo, que estudou jornalismo comigo, disse que estava se perguntando muito sobre seu sentimento de que era um erro se tornar jornalista enquanto sua verdadeira paixão é a música. Quando a conheci, no início do curso, ela era musicista na orquestra de sua cidade. Abandonou isso para virar jornalista. De certa forma, todos abandonamos sonhos infantis para tornarmos-nos adultos, mas será que esse abandono é sensato? Será essa adultez realmente necessária? Enquanto sociedade, temos algumas ideias muito fechadas sobre o que significa tornar-se adulto e acabamos, de certa forma, tentando nos encaixar em posições onde não nos encaixamos. Nos mutilamos no processo.

Em A História Secreta, somos apresentados a toda a trama por Richard, um rapaz californiano, de família pobre e bruta, que consegue uma bolsa de estudos numa universidade de Hampden, em Vermont. Richard, que nunca fora educado para aspirar ser algo além de seus pais, estudara grego durante os anos escolares por questões práticas de créditos e, por mais insistência e sorte do que qualquer outra coisa, acabou conseguindo seu lugar lá, numa faculdade conhecida por ser um ambiente acadêmico propício à arte. Antes, ele até tentara cursar algo na área da biologia, talvez medicina, mas não conseguia se encaixar naquilo, pois não era o que realmente queria, o que realmente o instigava. O que ele queria, na verdade, era sair dali. A Califórnia representava tudo de que ele queria se afastar - seus pais, sua casa pobre, suas roupas remendadas, as pessoas com quem não conseguia ter conversas para além das de elevador, o calor, a falta de interesse por livros em geral... Richard aspirava por outro mundo, um mundo mais elevado do que aquele em que nasceu. E, assim, ele conhece Henry, Francis, Charles, Camilla e Bunny, os cinco alunos da seleta turma de grego clássico que parecem quase etéreos em meio a um campus barulhento e repleto de festas.



Ele quer pertencer àquele lugar. Ele quer conhecer aquele grupo de amigos do grego clássico. A bem da verdade, embora goste de literatura e tenha conhecimento suficiente de grego, Richard não se importa muito com a ideia de graduar-se em grego ou em inglês; o que ele deseja é sair de si mesmo, é ser outra pessoa, e ali, em Hampden, onde ninguém o conhece, ele tem essa possibilidade. E Richard a agarra como se dela dependesse sua vida. A forma voraz e, ao mesmo tempo, ingênua com a qual o faz lembra-me Tereza, de A insustentável leveza do ser, agarrando-se a uma vida que acreditava não ser a dela, e, por isso mesmo, lhe parecia mais bela. Richard, Tereza e todas as pessoas que conseguem escapar de uma realidade dura e pobre, passando a frequentar um ambiente que consideram da "alta sociedade" (existem questões a respeito disso que não vou comentar a fundo neste texto, mas digamos apenas que esse conceito é ridículo), vivenciam esse conflito entre beleza e terror mais intensamente do que aquelas que nasceram em locais de privilégio, ou mesmo as que nasceram em famílias simples, porém sentem-se pertencentes a seus locais de origem.

Richard faz de tudo para manter uma aparência semelhante a de seus colegas do grego clássico: gasta seu parco salário nas roupas mais elegantes pelas quais pode pagar, mantém uma aura de mistério, não falando muito sobre seu passado, começa a participar de idas a restaurantes e à casa no campo, distancia-se de todos os outros alunos do campus e estreita os laços com seus colegas, que tornam-se uma espécie de família para ele, ainda que sinta-se deslocado, de certa maneira, quando está no meio deles, já que nunca viajou para fora do país, não frequentou escolas particulares, ninguém ali sabe que ele é bolsista e o fato de trabalhar não é por questões éticas, mas sim para conseguir sustentar-se, já que a ajuda de seus pais é inexistente.

A história nos é contada por um Richard mais velho que, no que parecem ser suas memórias, relata o ano que mudou sua vida. A amizade com os jovens da pequena turma de grego clássico, influenciados por Julian, um professor estranho, enigmático e egocêntrico, os leva a arriscar tudo em nome de uma experiência única: um bacanal. A partir do momento em que decidem deixar o controle de lado e entregarem-se a tudo que envolve um bacanal, o que ocorre é apenas consequência dos atos de jovens irresponsáveis cujas famílias ricas não se importam se eles conseguirão graduar-se ou não, já que eles possuem posições mais ou menos garantidas na vida. Mas, para Richard, as coisas não são assim. Para ele, o futuro pode ser duro. E a faculdade é sua única chance de mudá-lo.

“É perigoso ignorar a existência do irracional. Quanto mais instruída, inteligente e reprimida é a pessoa, mais necessita de métodos para canalizar os impulsos primitivos que subjugou com tanto esforço. Caso contrário, essas forças ancestrais poderosas acumularão força e energia até se tornarem violentas o bastante para romper as amarras, e tanta violência acumulada costuma, com frequência, suplantar totalmente a vontade.”

A morte anunciada já nas primeiras páginas do livro é um ponto importante na história, mas não é o que mais lhe confere mérito. A grande sacada de Donna Tartt foi mostrar, com personagens complexos e conceitos retirados das tragédias gregas, as diferentes facetas do destino que deixar-se levar por um momento inconsequente de prazer e loucura pode abater sobre alguém. Cada pessoa ali experiência as consequências daquele momento, e daquele aprendizado com um professor completamente absorto em si mesmo, de forma diferente. Mas todos sofrem no final. Todos possuem uma dívida, senão com a sociedade, ao menos consigo mesmos. E o tormento daquilo que retiraram, e daquilo que perderam, não os deixa viver em paz até o final da história. Entretanto, embora seus dias de juventude lhes causem terror pelas lembranças daquilo que fizeram, eles também são os mais felizes, os mais repletos de brilho e de vida que tiveram.

Ler A História Secreta neste contexto pandêmico, em que cambaleamos para o lado mais dionisíaco de nossas personalidades, é um lembrete de que, embora seja atraente perder o controle e exista real beleza nisso, alguém terá de limpar a sujeira. E esse alguém, geralmente, é a pessoa que precisa trabalhar para viver, como Richard que, depois de tudo, ainda precisou recolher seus pedaços, mudar de graduação e recomeçar, implorando para não perder a bolsa e decidido a ser uma pessoa responsável agora, pois ele não teria ajuda de ninguém para sobreviver. É claro que todos eles possuem finais trágicos, mas é Richard quem precisa voltar e reunir os pedaços de si mesmo para recomeçar, enquanto os outros se dispersam.

A perda de controle é atraente e certamente é melhor deixar-se levar um pouco do que viver cercado por uma estrutura tediosa e desesperadora, onde somos apenas atores desempenhando papéis de figuração. Mas é preciso pensar nas consequências, por mais terrível que isso seja. Richard teve de lidar com elas, Tereza também, assim como Neil, em Sociedade dos Poetas Mortos, ganhando seu final trágico após uma alegria breve. Mas é preciso sair de si mesmo para não perder a sanidade.

“Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta.”
(Shirley Jackson, A Assombração da Casa da Colina)

Comentários

  1. Que texto maravilhoso. Vou com certeza usar para pensar em milhares de coisas, porque estou vivendo isso há um tempo. O equilíbrio do instável, como diria Paul Klee. A quarentena evidenciou um modo 8/80 de ser. Assim como você, sempre fui muito responsável e dedicada, mas tenho percebido que a pessoa que mais me cobrou isso fui eu mesma. Desde criança amava mitologias, grega e egípcia, morte, mistérios, sobrenatural, arte renascentista e música clássica. Por rebeldias adolescentes (necessárias, mas não superiores a nada), fui vivendo a realidade em ideologias que são para mim, mas não são "eu". É algo externo. E para ir contra essa prisão das burocracias, patriarcado e capitalismo, eu caí justamente na prisão!!! Não pela quarentena, abandonei meu emprego porque eu amo tudo que aprendi e estudei, mas é a arte minha vida mesmo. Vou batalhar como esse rapaz do livro, mas não para me encaixar em grupos alheios como no passado. Estou, acho, no momento em que ele recolhe os cacos e segue em frente. Só que - acho, espero, acredito - num bom sentido, estou tentando (re)construir a Helen que amava ler O Guia dos curiosos e assistir a Scooby Doo e A Múmia. Recolhendo minha ainda pouca experiência de vida e criando colagens, coletâneas, histórias, dentre outras coisas, para instigar as pessoas a fazerem o mesmo. Com certeza lerei os livros citados. As frases me pegaram de jeito! Isso do racional e irracional me lembrou muito de O Lobo da estepe de Hermann Hesse, Poema em linha reta, de Fernando Pessoa e Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estes. Entre outros... Cidade e as serras. Acho que essa racionalização da humanidade é um desequilíbrio histórico que só aparenta nos deixar mais desenvolvidos, mas que nos empobrece por dentro. Ateus ou espiritualizados, precisamos de um equilíbrio entre as partes, e precisamos lembrar que, antes de humanos, somos animais.

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