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“a thing of beauty is a joy forever”

Escondida no jardim secreto

Desde o início da pandemia, a vida mudou de uma forma ansiosa e desesperada, trazendo muitas coisas ruins e noites mal dormidas. Do ano passado, com a ameaça da pandemia, até a certeza de uma nova realidade, perdi a vontade de fazer muitas coisas que amo porque, no meio de grandes acontecimentos históricos, todo o resto parece pequeno. Apenas mais ou menos na metade de 2020 consegui começar a retomar minhas atividades e voltar a fazer as coisas que me fazem bem, como ler.

A ideia de inaugurar um clube do livro veio muito desse sentimento de impotência mediante à realidade e do desejo de fazer algo em conjunto, algo sobre o qual possamos conversar e compartilhar sentimentos que não envolvam a pandemia. Por isso, não é nenhum espanto que o primeiro livro escolhido tenha sido O Jardim Secreto, um clássico infantil cuja adaptação cinematográfica marcou o crescimento de muitas de nós. Nunca havia lido o livro, sequer lembrava da história, mas, embora a dificuldade de concentração até mesmo para ler fosse uma realidade, eu sabia que esse livro me faria bem. É meio como quando você está se sentindo triste e toma sorvete para passar. Seu problema não vai sumir por causa do sorvete mas, por um momento, as coisas parecerão mais suportáveis e bonitas. Existem lugares confortáveis pra onde vamos quando estamos numa situação difícil. Pode ser uma comida preferida, um filme, uma lembrança ou, no meu caso, a literatura. Ler O Jardim Secreto foi me sentir abraçada pelo mundo encantado de Mary, Dickon e Colin. Um conto de fadas moderno às vezes é tudo de que precisamos para lembrarmos de que isso vai passar e de que ainda há vida lá fora. "Eu tenho certeza de que existe mágica em tudo e que nós é que não sabemos tirar proveito dela." Eu também tenho.

Meses após ter feito a leitura, o livro de Frances Hodgson Burnett permanece na minha mente. Eu já escrevi sobre ele, mas sinto a necessidade de voltar e falar um pouco mais sobre essa obra e sobre o jardim, o gótico e o crescer. 

Ao mergulhar no universo de Mary Lennox, a protagonista do livro, aproveitei para voltar à minha própria infância e reassistir ao filme homônimo, lançado em 1993. Tenho algumas lembranças do filme, de tardes sentada no sofá, assistindo a história de Mary e me encantando com as suas descobertas no jardim. O que eu não lembrava, todavia, era que o filme é extremamente sombrio. A atmosfera gótica que paira sobre ele é bem séria e pesada, considerando que trata-se de um filme destinado ao público infantil. E, ainda que o final seja bonito, a trajetória pode ser até mesmo assustadora. 

Mary chega à mansão de seu tipo após perder os pais numa epidemia. A mansão possui cem quartos, todos trancados - com exceção dos poucos usados pela criadagem da casa, pelo tio e o que será usado por ela. Tudo naquela casa, desde a charneca até os retratos de antepassados da família pendurados nos longos e escuros corredores grita gótico. Inclusive a própria protagonista. Mary é sisuda, fechada, atormentada por si mesma e pela falta de amor em sua vida. Aos dez anos, ela nunca recebeu atenção ou cuidado real - nem mesmo de seus pais. Uma criança criada dentro de casa, que não pegava sol, não brincava, não fazia nada além de ordenar coisas e sentir-se entediada. Nem mesmo a morte a comove. A ideia de fantasmas tampouco. Mary tornou-se indiferente a tudo e a todos. Mas, ao encontrar um ambiente tão sinistro que lhe incita a ir para fora, pois nada poderia ser pior do que ficar dentro daquela casa o tempo inteiro, é que ela começa a interessar-se por algo. 

Eu também fui uma criança criada em casa. Sair para brincar estava totalmente fora de cogitação e cresci lendo muitos livros, observando o meu quarto, arrumando coisas para fazer num espaço restrito. Foi também um jardim que me tirou para fora de casa. Nos mudamos para um local com um jardim enorme - e lá plantei árvores, flores, fiz uma horta, tínhamos até um poço. Eu ainda não podia sair, mas nem precisava, pois meu mundo todo girava naquele entorno. 

2020 pareceu muito com a minha infância. Trancada em casa, proibida de sair para fora do portão, mas rodeada por um jardim e por meus livros. Não posso dizer que foi ruim. No entanto, talvez tenha sido um pouco demais todas as partes góticas e sombrias de O Jardim Secreto. A pandemia. Pessoas morrendo. O medo. A sensação de torpor mediante a vida. Uma casa escura, repleta de corredores e quartos e portas trancadas, que range durante a noite. Foram muitos os dias em que me senti como o primo de Mary, Colin, em cima da cama, com medo de abrir a janela, longe da luz do sol. 

Talvez o que eu mais goste em O Jardim Secreto é que Mary não sai de casa para encontrar coisas boas. O máximo que ela faz é ir até o pátio e fazer uma hortinha, cuidar de umas flores. O jardim é seu esconderijo - mas um esconderijo não precisa, necessariamente, ser sombrio e repleto de medo. Podemos crescer em lugares assim. 

Comentários

  1. O filme já pássou tantas vezes na sessão da tarde que está gravado na minha memória afetiva... Quero assistir o filme novamennte acredito que ja decorei as falas e acontecimentos.

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