Faz mais ou menos um mês que recebi uma carta de um rapaz finlandês. Participo de uma comunidade de pessoas que gosta de escrever cartas chamada Slowly. É um aplicativo que seleciona, por ordem de interesse e língua, pessoas do mundo todo com quem você pode trocar cartas. Eu amo fazer isso e já conheci algumas pessoas muito interessantes por lá. Mas esse rapaz finlandês me perguntou quem é esta Mia, a Mia de agora, a Mia que está conversando com ele. Qual é a narrativa dela?
Essa é uma pergunta e tanto.
É difícil traçar uma linha que me leve do ponto onde deixei de ser a Mia da banda até o agora, onde sou a Mia que analisa livros para editoras. Sei que tem muita coisa que passa entre um ponto e outro, mas o que isso tudo fez comigo é difícil de determinar. Existem anos que são meio nhé e existem aqueles pelos quais não passamos incólumes. 2020 certamente foi um deles e este 2021 está se provando ser da mesma substância. E embora seja certo que eu tenha mudado, é difícil definir quem eu sou neste momento, como tudo isso me afetou e qual narrativa estou vivendo - até porque eu estou vivenciando tudo isso ainda. Como olhar para o agora e ver o todo quando se está ainda a caminho de algo? Só conseguimos enxergar essas trajetórias pessoais depois de um tempo acabadas. Acho que o fato de não enxergar com clareza o que isso significa para mim, quem eu sou e qual é a minha narrativa indica que a história atual ainda está em andamento. E tudo bem. Mas isso também explica por que me sinto como a cobrinha no jogo da cobrinha, com movimentos limitados. Você vai para lá e para cá, mas está sempre no mesmo quadrado. É uma trajetória que venho explorando há um bom tempo, seja ela qual for, mas é difícil defini-la.
Às vezes, eu só preciso de um meio do mato metafórico.
Lembro da última vez em que me senti verdadeiramente feliz. Estávamos voltando de viagem, era início de janeiro de 2020, e paramos para almoçar num restaurante na beira da estrada. Havíamos passado por vários no caminho, mas eu não tinha sentido o ~~feeling com nenhum deles. E eu preciso sentir algo na energia do local que me atraia para ele. Já estávamos na estrada há algumas horas quando vi um restaurante escondido no meio do mato - literalmente. Havia um grande gramado com muita vegetação, árvores, moitas que cobriam a entrada do lugar e, ao fundo, um restaurantezinho pacato e simples. Disse para o Vinicius encostar porque almoçaríamos lá. Foi perfeito.
O local era lindo. Apesar da fachada escondida, o que poderia parecer estranho, tudo era muito arrumadinho lá dentro. Foi como entrar numa casa de vó, mas uma que vendesse meu prato favorito e que tivesse Netflix no menu. Sentamos numa mesa bem no canto, pedimos uma Coca-Cola e um prato com fritas, bife e arroz. Foi tranquilo. A comida era boa, estávamos cercados por árvores e vegetação diversa. Não havia nada por perto além da estrada e do silêncio da natureza. Eu me senti verdadeiramente feliz. Naquele momento, não existia nem um pingo de ansiedade ou de nada do tipo que atrapalhasse a minha felicidade. Foi uma sensação de pertencimento.
Cresci em restaurantes. Meus pais sempre tiveram restaurante/lancheria, então o ambiente me é familiar. Numa vida alternativa, largo tudo e vou para o meio do mato, abro um restaurantezinho e vivo lá, cuidando das minhas coisas e lendo meus livros sentada debaixo de uma árvore. É um dos cenários perfeitos para mim. O anonimato de uma vida simples. Estar rodeada por boas comidas, natureza e tranquilidade. Mas não é a vida que escolhi.
Eu poderia tê-la escolhido. Teria sido simples, dada a minha família. Mas acabei indo por outro caminho e cá estou, jornalista, revisora, escritora. Não sei se foi o melhor caminho ou se outro teria sido melhor. Mas é o meu. É o que escolhi. É claro que, na minha cabeça, a vida na qual eu sou dona de um restaurantezinho no meio do nada é muito bonita e feliz, mas ela é uma idealização, um lugar especial que criei na minha mente onde todos os meus problemas não existem. Não é real. Não há como viver todas as possibilidades para só então escolher uma.
Porém, isso é possível em A biblioteca da meia-noite (The midnight library no original), livro escrito por Matt Haig. Nora Seed chega a seu limite quando, após ser demitida do trabalho, seu gato é encontrado morto na rua. Lidando com questões de saúde mental há muito tempo e não encontrando mais motivos para continuar tentando, ela decide suicidar-se. Para tal, deixa um recado, toma alguns comprimidos e... acorda numa biblioteca. Lá, ela é recebida pela bibliotecária de sua antiga escola, que lhe explica as regras do local: a biblioteca existe enquanto ela, Nora, existir. Ela está entre a vida e a morte e, entre ambas, há uma biblioteca de possibilidades. Todas as vidas possíveis de Nora estão escritas nos inúmeros livros existentes lá. E o grande livro dos arrependimentos é o guia para encontrar quais vidas Nora gostaria de viver enquanto o relógio marcar meia-noite.
A cada arrependimento que escolhe, Nora é capaz de vivenciar uma vida num universo alternativo. A teoria dos multiversos está presente no livro, que mostra como cada escolha abre um leque de possibilidades e cria uma versão nossa. A Nora que escolheu continuar com a natação na adolescência, agora é uma campeã olímpica que dá palestras. Aquela que não abandonou a banda que tinha com o irmão está em São Paulo, num show gigantesco, e possui milhões de fãs. A felicidade, entretanto, é algo tênue, e Nora descobre que vidas grandiosas aos olhos do público nem sempre significam vidas felizes ou satisfatórias. Às vezes, a felicidade está no que é simples e tranquilo.
Uma das mais felizes é uma em que ela é uma cientista no Ártico. Isolada de todos, correndo perigo ao enfrentar um urso polar, pesquisando o aquecimento global, Nora se sente verdadeiramente feliz. Não se engane, é tudo péssimo: o frio é realmente frio, do tipo que congela e não há o que fazer, ninguém da tripulação se conhece direito, o trabalho é difícil, as condições, péssimas, e, embora importante, não é como se o mundo ligasse muito para o clima. Não há reconhecimento. O anonimato dessa vida é tangível. Mas ela é repleta de uma sensação de pertencimento, de estar fazendo algo importante. E isso conta muito.
Mas Nora segue em frente para a próxima vida, mesmo estando feliz naquela.
Não é muito diferente em essência do que a personagem de Zoë Kravitz faz em High Fidelity. Assisti a série inteira em uma noite e foi uma experiência repleta de sentimentos. Eu certamente não imaginei que sentiria algo com a série, sequer pensei que fosse gostar dela a princípio, mas acabei me envolvendo com a história porque é aquilo: pessoas se autossabotando.
Gosto de pensar nessa autossabotagem não como uma espécie de síndrome do impostor. Não é como se fosse um "eu não mereço isso", mas sim um "eu mereço muito mais do que isso". Mas não é bonito dizer que se tem ideias de grandeza, então a gente coloca tudo na conta da síndrome do impostor (que eu considero um conceito bem arrogante, para falar a verdade, mas prossigamos). Contudo, existe um limiar entre o sentir-se superior àquela vida que se está levando e o medo de ir atrás do que se quer. É confuso, especialmente porque, com o passar do tempo, é fácil deixar-se levar pela ideia de sempre merecer algo melhor. E se o melhor que você vai ter for o que você já tem?
E se a sua melhor versão for a de hoje?
A própria Sabina, de A insustentável leveza do ser, se encaixa bem nisso. Mas ela chama o que faz de ~~traição. Ela trai seus próprios desejos e expectativas, sempre ansiosa pela próxima traição da lista, que lhe fará sentir aquela sensação de renovação novamente.
Uma vez não conta. Uma vez é nunca.
Mas, se só existe esta vida, o que se faz com isso? Se conforma, se vive, se muda constantemente? Vai jogar bejeweled para passar o tempo? São questões. Porém, olhar para essas personagens (curiosamente, sempre mulheres) que seguem em busca de si e de quem desejam ser é algo bom. Se uma vez é nunca, vamos fazer esse vazio valer a pena.
Coisa linda de ler, foi um prazer ler isto, me trouxe mt mais sentido de existência
ResponderExcluirPerfeito.
ResponderExcluirGerald
ExcluirBelo texto, meus parabéns. Estive procurando mais sobre o Eterno retorno de Nietzsche e encontrei esse texto aqui. Gostei tanto que posso dizer que foi uma das melhores coisas que me aconteceu hoje.
ResponderExcluirPerfeito e necessário!👏👏👏
ResponderExcluirOlha onde Aristeu do guarda chuva me fez chegar em 23/04, as 01:30h da manhã, chorando. Valeu aristeu
ResponderExcluirAristeu do guarda chuva tb é cultura. quem vier por causa dele deixa um salve.
ExcluirProvérbio Alemão – Einmal ist keinmal = Uma vez não conta! Uma vez é nunca.
Vim pelo Aristeu tbem.....kkkk
ExcluirObrigada, Aristeu do guarda-chuva! Me fez chegar até esse texto incrível!
ExcluirAristeu do guarda chuva... acabou de me ensinar uma lição de vida..
ResponderExcluirBelo texto
Vim pelo Aisteu
ResponderExcluirA que ponto chegamos...
ResponderExcluirAristeu mexeu com a minha cabeça kkkkkkkkkk
ResponderExcluirAdorei ter lido isso. Obrigada!
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