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“a thing of beauty is a joy forever”

O ano mágico de Joan Didion

Woman reading, de Peter Ilsted (1907)
Hoje percebi que faz dez anos que terminei meu primeiro namoro. Não faz dez anos desde que o iniciei, mas sim que o terminei. Acidentalmente, vi que meu ex está curtindo a página do Querido Clássico no facebook e lembrei: faz dez anos. Demorei um pouco para fazer essa constatação porque, de certa forma, é como se ainda estivéssemos em 2012, quando tentamos nos reaproximar, o que acabou não dando em nada. Ou, ainda, em 2015, quando ele foi comigo até a faculdade para fazer a matrícula, simplesmente porque não tinha ninguém para me acompanhar e, embora não sejamos mais próximos há muitos anos, ele ainda é - ou era - uma pessoa na qual confio para eventos importantes. 

Mas isso faz cinco anos. 

O tempo parece ter congelado de lá para cá. Ou, melhor dizendo, parece ter se estendido de tal forma como se tivesse sido esticado por um rolo de abrir massa. Ainda é o tempo, ainda possui a mesma medida, mas noutro formato, um que moldo ao acaso, na pressa de cada dia. Faz cinco anos que não o vejo e está tudo bem. Pensei que esse tempo turvo tivesse começado apenas na pandemia, mas me dei conta de que eu existo nele há muitos anos. 

Quando a pandemia começou de fato por aqui, em março, entrei numa bolha que chamo de tempo sem tempo. Não lembro de quase nada daquele mês, com exceção de algumas cenas do terrível O Poço, que havia recentemente estreado na Netflix e que uma amiga sugeriu que assistíssemos numa watchparty. Também lembro que passei dias e dias deitada ou sentada, chorando e gritando, ora dormindo muito, ora não dormindo nada. Mas são apenas flashes que não se sustentam em imagens sólidas, especialmente porque tudo havia acontecido e nada acontecia. Assisti a algumas comédias em março. A princípio, tentei ir pelo caminho das comédias românticas, mas elas não causavam reação alguma a não ser desespero por me fazerem pensar no que eu estava perdendo, no que poderia - e, certamente aconteceria - perder. Logo, apelei para comédias escrachadas, do tipo American Pie. Lembro de um ou dois flashes disso. Só sei que aconteceu porque possuo a grata mania de anotar tudo o que assisto e leio. Mas não li nada em março. Deixei alguns livros pela metade que ainda não tive coragem de retomar. Somente a ideia me faz pensar que voltarei para aquele tempo, aquele torpor. É irracional e um pouco louca, mas nem por isso menos verdadeira. O fato de minha memória mais consistente daquele momento ser justamente das cenas de O Poço, repletas de violência e desespero, podem significar algo. Porém, não me atrevo a analisar isso. 

O primeiro livro que li durante a pandemia foi Imunidade, da Eula Biss. É irônico que eu, hipocondríaca com ataques tão fortes de ansiedade que chego a dissociar, tenha escolhido justamente essa leitura para destravar o pensamento naquele momento. Era abril e eu havia passado um mês inteiro sem ler nada. Até havia tentado, mais para o final de março, quando estava começando a me dar conta dos dias novamente e pensava em fazer um esforço para recuperar a sanidade, para não me deixar arrastar num abismo de desespero. Mas não havia conseguido. Lia uma página infinitamente e me perdia nas curvas das letras, nos espaços entre as palavras, nos significados das coisas não ditas - e que nunca mais seriam ditas porque a perda de tudo o que a pandemia nos tirou e ainda pode tirar me parece eterna, abissal. Everyday is exactly the same, disse a música do Nine Inch Nails. Mas não é exatamente o mesmo, apenas parece ser. Chove agora, mas fazia calor em março. No entanto, sinto frio desde o início, um frio que me obriga a usar três meias e dois blusões, um frio que não me abandona quase nunca. 

Ler O Ano do Pensamento Mágico, da Joan Didion, me fez mergulhar mais uma vez nesses processos e na minha memória. Não lembro de quase nada, mas lembro de começar a me sentir eu mesma, pelo menos um pouco, quando consegui pegar Imunidade para ler. Entendo meus processos, mas não os racionalizei na época. Nenhuma ficção funcionara para mim porque a realidade superou tudo o que eu pudesse ler de invenções alheias. O caos precisava de ordem e eu precisava de informação. Portanto, ler sobre epidemias, pandemias, vacinas e morte fazia sentido naquele momento. Tentar sair do torpor da perda e do luto pulando num terreno árido e duro é o caminho mais normal que conheço - e eu precisava de normalidade. 

Minha normalidade vem sempre acompanhada a pesquisas. Antes de ser jornalista, eu já era uma pessoa dos livros, da informação, da catalogação. Os anos de curso de biblioteconomia me ensinaram o valor de uma boa organização. Mas, ainda na escola, eu me debruçava sobre assuntos específicos e não descansava até saber tudo o que pudesse sobre eles. Existe um piada na minha família que consiste basicamente nos meus irmãos interromperem qualquer coisa que eu vá dizer com "eu pesquisei", dito numa voz aguda e com uma expressão séria, na tentativa de me imitar. A última vez que isso aconteceu foi no meu aniversário, no início deste ano. Eles sabem que a minha forma de lidar com o mundo é pesquisando a respeito. Não sei até que ponto compreendem a necessidade que tenho de saber onde estou pisando, mas eles conhecem meu modus operandi. Minha primeira obsessão desse tipo foi por Alexandre, o Grande. Devorei todos os livros, revistas e filmes sobre ele em que pude botar as mãos. Eu tinha onze anos e só falava sobre o Peloponeso. Hoje vejo que minha fascinação por ele não se tratava da Grécia Antiga, embora eu siga achando incrível aquele período, mas sim da tentativa de saber do mundo para não sofrer no tempo presente. Crescer na minha família não foi fácil, especialmente onde morávamos, e eu precisava saber de um outro mundo, conhecer as vidas de outras pessoas, aprender com seus caminhos - enquanto deixava o tempo escoar. Passei pela infância e adolescência assim. Ainda faço isso. 

Joan Didion conta, em seu livro, que o que fez após a morte do marido foi mergulhar em leituras técnicas sobre medicina, morte e processos de luto. O Ano do Pensamento Mágico está longe de ser uma leitura leve, mas dei algumas risadas durante essas passagens porque me senti compreendida. Talvez seja coisa de jornalista; talvez seja coisa de escritora. Quem sabe de ambas? Mas essas necessidade de tentar sair do torpor e preencher o tempo da dor e da confusão com informação concreta e respaldada faz parte de quem eu sou também. Informação é poder, ela escreve no livro, e, antes que eu chegasse a essa frase, já havia pensado nisso. Informação é poder e poder é controle. E, quando você controla as coisas, não é pega de surpresa. Você é uma pessoa sã, você tem domínio sobre si mesma e sobre a sua realidade. 

Exceto que você não tem. Foi algo que demorei para aceitar, mas podemos saber de tudo, ter lido todos os livros, feito listas, organizado a rotina... Nada disso faz grande diferença ao nos depararmos com uma situação incontornável.

A pandemia parece tão fixa quanto o luto.

Meus encontros com a Joan aparentemente só acontecem quando estou impossibilitada de sair. No final do ano passado, li O Álbum Branco praticamente inteiro na cama porque havia sofrido um acidente e aberto um pé. Fiquei dois meses mancando. Em seguida ao livro da Joan, li O Ano do Macaco, da Patti Smith. Se no primeiro temos Joan ainda jovem, escrevendo sobre os anos 1960 como se fosse uma espectadora, tentando compreender a si e ao mundo através da escrita - uma escrita narrativa que soa como ficção -, no segundo encontramos Patti e seus sinais oníricos de um ano tomado pelo processo do luto e de um tempo sem tempo. Não sabia, quando li esse livro, que logo também passaria por um ano dotado de uma característica turva. São livros que conversam entre si, embora sejam diferentes.

Em O Ano do Pensamento Mágico, Joan rememora os dias que antecederam a morte do marido, John Dunne, assim como nos detalha seu processo de perda e luto. Não é fácil de ler e dificilmente pode ser considerado um livro bonito, mas é real. Seu espanto para com a morte, a lentidão com que aceita que seu marido não voltará, a dificuldade que enfrenta para convencer a si mesma de que todos os pequenos rituais que passou a realizar desde então não mudarão os contornos do passado... Talvez, numa ficção, fossem os primeiros traços de uma mulher enlouquecendo, e ela mesma usa o termo "louca" uma ou duas vezes, no entanto, o que encontramos é somente uma pessoa sendo honesta a respeito de seus pensamentos mais contraditórios durante um período terrível. Como Viktor Frankl disse em seu livro, Em Busca de Sentido: "Ter uma reação anormal a uma situação fora do comum é um comportamento normal". Não poderia concordar mais.

"Por que eu insistia em assinalar o que era e o que não era normal quando nada daquilo era normal?"


Quando li O Ano do Macaco, escrevi que "Parece mais fácil suportar um período de pré-luto quando nos refugiamos em assuntos de terceiros que, por mais dolorosos e difíceis que sejam, não estão acontecendo conosco". Enquanto estava lendo o livro da Joan, me peguei pensando nisso, na reflexão que fiz a partir da leitura da Patti, ao final do ano passado. São livros sobre mulheres tentando encarar o luto, mas se perdendo num tempo sem tempo, envolvidas com outras tragédias, até que finalmente compreendem que o pré-luto passou e o luto real bate à porta.

De certa forma, acho impossível ler um livro tão pautado no real, tão pessoal, e não pensar em minhas próprias experiências com a perda e o luto. Demorei dois anos para chorar quando minha avó morreu. Ela já estava internada havia um bom tempo, mas eu simplesmente não conseguia aceitar que ela havia morrido, bem durante os preparativos do meu aniversário, e que ela nunca mais comeria o bolo que eu havia feito ou me daria parabéns. Fiquei dois anos ruminando a dor até que enfim, um dia, me caiu a ficha de que ela nunca mais voltaria. É irracional e meio louco, mas é real. O pré-luto pode durar dias, semanas, anos.

"Até aquele momento, tinha me permitido apenas sofrer, não ficar de luto. O sofrimento é passivo. O sofrimento acontece. O luto, o ato de lidar com o sofrimento, exige atenção." 


No início da pandemia, alguém escreveu que estamos vivendo um período de luto. Não creio que todos estejamos, mas alguns de nós estão em pré-luto por tudo o que perderam - não necessariamente pessoas, mas a liberdade para sair, a tranquilidade de ver alguém, pequenas coisas que fazem da gente quem somos, que nos ajudam no cotidiano -, outros realmente vivenciam o luto por perdas intransponíveis. Ainda que haja muita gente tocando a vida como se nada estivesse acontecendo, paira no ar a sensação de desolamento, de desespero, de um tempo tão amargo que parece infinito. Mas nada o é.

"Somos seres mortais imperfeitos, conscientes dessa mortalidade mesmo quando a negamos, traídos por nossa própria complexidade, tão incorporada que quando choramos a perda de seres amados também estamos chorando, para o bem ou para o mal, por nós mesmos. Pela perda daquilo que éramos. Do que não somos mais. Do que um dia não seremos de todo." 


A rigidez do tempo é só um escape para não enlouquecermos. O tempo da morte é em todo o lugar e ocupa o não-tempo, as lacunas, a espera. Talvez seja isso a que chamamos de eternidade.



Esse livro foi lido durante a leitura coletiva do mês de setembro, realizada pelo Querido Clássico com a Jess, a Michelle e mais algumas pessoas que toparam embarcar nessa conosco. 

Comentários

  1. Eu me identifiquei tanto com o seu texto que nem consigo escrever tudo aqui sem fazer outro post! Sempre tive essa sensação de que a vida acontece em uma velocidade absurda enquanto eu fico parada, tentando entender quanto tempo se passou. Posso colocar a culpa na internet, na velocidade das coisas e das informações, mas vou deixar a culpa na cultura Taylorista (como uma boa administradora), que nos ensinou que cada segundo da vida tem que ser vivido com consciência, produtividade e percepção altíssimas. Li "O dia em que Selma sonhou com o ocapi" por indicação sua, tenho consciência de que o livro não se aproxima do estilo da Joan Didion, mas tive essa mesma sensação: de uma passagem de tempo real, gradual, calma. A maioria dos livros vão logo para ISSO ACONTECEU, DEPOIS ISSO, DEPOIS ISSO E FIM e a vida real não é assim. A vida real toma tempo, demanda parar e respirar fundo e só entender algumas coisas depois de um tempo.

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