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“a thing of beauty is a joy forever”

Tempo de anseios

Heart of snow, de Edward Robert Hughes

Há algum tempo estava eu numa conversa dizendo que "pelo menos a varíola foi erradicada". Aí me aparece a varíola do macaco. Em outro momento, estava dizendo que "pelo menos a tuberculose está sob controle e há tratamento para isso". No dia seguinte, sai uma matéria na tv local dizendo que a pandemia de tuberculose nunca parou, com números crescentes ultimamente - e os medicamentos não fazem efeito em todo mundo. 

No início da pandemia, eu falei diversas vezes que estávamos vivendo os novos anos 20: não porque estamos, de fato, no início da década de 2020, mas também porque os anos 20, ou roaring 20s, ficaram conhecidos por ser esse período marcado por uma pandemia de gripe espanhola que havia acabado de assentar, um período entre guerras, e também um momento em que todo mundo ficou meio doido da cabeça e saiu pra beber e fazer festas num estado desesperado mesmo ou por causa da pandemia. Mas esses foram os 1920. O que sinto agora é que enquanto as pessoas estão na década do Fitzgerald, eu estou em outros anos 20: a década de 1820. Com o Keats, o pessoal das varíolas, da tuberculose e da melancolia dos Românticos. 

Ainda no século XIX, o próprio Álvares de Azevedo (isso já em terras brasileiras), nosso representante do ultrarromantismo gótico, escreveu em Noite na taverna um cenário que não é tão diferente do atual. Enquanto as pessoas morriam pela epidemia de cólera, na taverna diversas outras se reuniam e bebiam juntas, fazendo festa e vivendo aquele momento com uma intensidade que pode ser lida como desmedida. É a Danse Macabre? É a pulsão de morte? Ou, como pode ser lido de acordo com a teoria do gótico literário, são aqueles personagens essencialmente góticos, por terem se permitido dessensibilizar pela dor da doença, da morte, da tragédia alheias, e seguem festejando, ainda que os gritos e choros de tantas perdas possam ser ouvidos do lado de fora da taverna? São questões. E a comparação com a realidade atual é um exagerada, mas existe uma correlação entre pandemias e surtos de celebrações - celebrações estas feitas sob o risco do contágio, diga-se de passagem. 

Mas consigo compreendê-los. Eu não sou uma pessoa de exageros no sentido de festas, porém acredito que períodos extensos de doenças coletivas, medo e perda nos levam àquilo que realmente somos, seja lá o que for isso. Quando a vida está prestes a cessar, nos voltamos para a nossa essência. Para uns, pode ser o buscar de uma natureza sociável, o estar entre pessoas e com elas viver e celebrar enquanto houver vida. Para outros, como eu, trata-se de recolher-se em si mesmo e contemplar o que há de melhor no mundo: a arte. Ler, assistir filmes, estudar manifestações artísticas e, por que não, criar. Enquanto houver vida para tal. 

Comentários

  1. Oi Mia! Não tinha pensado nesse período como um desses períodos de epidemias e crises e coisas do tipo, por mais que a comparação seja óbvia, agora que você falou. No meu caso, eu me sinto um pouco como esses escritores antigos, confinados em casa, em um estado decadente, ficando deprimido e escrevendo romances góticos e lamentações. Parte de mim busca o lado social (o que é uma surpresa pra mim) mas está bem complicado. Me resta o caminho do escritor mesmo, inclusive tem vários livros famosos que foram escritos em momentos como esse. Tempos dificeis esses que estamos vivendo

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  2. Olá Mia. Sempre leio seu blog, quase nunca comento. Eu também senti algo parecido quando surgiu a varíola do macaco, pois no começo desse ano eu tinha lido o livro do epidemiologista Michael Osterholm, onde realmente ele fala sobre essas duras realidades: do perigo da volta da varíola (e outras doenças "erradicadas") e como podemos ficar sem opção de medicamentos para tuberculose, super bactérias etc. Confesso que li e não quis acreditar... daí o espanto agora.

    Gostei do texto. Também acredito que em tempos difíceis voltamos para nossa essência. Abs.

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