Leia mais

“a thing of beauty is a joy forever”

A morte é uma coisa estranha


Nunca soube lidar muito bem com a estranheza da morte porque o que sempre permaneceu foi o sentimento de que a pessoa ainda existia - eu apenas não podia falar com ela. E talvez seja isso mesmo. Talvez o infinito seja o tempo da morte. A espera interminável por uma comunicação que não vai mais acontecer. E o agora, em contraposição, seja a urgência da vida - correr, dançar, falar, estar entre aqueles a quem amamos, tudo no agora, pois o amanhã é esse infinito indizível. 

Mrs. Dalloway é um dos livros mais violentos que já li. Violento porque nele as personagens encontram-se no que agora chamamos de pós-pandemia. A gripe espanhola, que assolou o mundo, matando aos milhões, havia chegado ao fim - mas restava uma população desgastada, com sequelas físicas e emocionais. A própria personagem-título, Clarissa Dalloway, é uma delas. Após a doença, ficou fraca. Por isso, é tão importante a frase que abre o livro: "Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores". É a urgência da vida em contraponto com a espera da morte. 

No conto Mrs. Dalloway em Bond Street, um esboço do que viria a ser Mrs. Dalloway, podemos assim dizer, Virginia Woolf escreve que Clarissa está caminhando em seu trajeto para comprar flores e luvas, mas sua mente insiste em voltar aos temas de que ela tanto tenta se afastar. Enquanto passa por lojas, pessoas e observa a vida ao redor, que voltara àquela Londres devastada pela guerra e pela pandemia, a mente de Clarissa lhe puxa para a lembrança da morte ao persistir em fixar o pensamento em Adonais, poema que Percy Shelley escreveu como elegia a John Keats, e a Cimbelino, de Shakespeare, especialmente a passagem em que, antes de um sepultamento, há um discurso fúnebre muito poético. 

Desde ontem, encontro-me no mesmo estado de Clarissa Dalloway, com o meu pensamento insistindo em fixar-se em Cimbelino

“Não temas o sol ardente nem o inverno enregelado; já descansas sorridente depois de cumprido o fado. O velho, a moça fagueira, o vilanaz, tudo é poeira. Não temas os poderosos, a vingança dos tiranos; livre estás dos dolorosos apetites dos humanos. Os ricos, a ciência inteira, bons e os maus, tudo é poeira. Do raio não tenhas medo, nem do trovão ribombante, o amigo não temas tredo, nem o inimigo arrogante. Moços e velhos, em fieira, sempre terminam em poeira. Nenhum encanto te ofenda de algum mago ou bruxa horrenda. Que espectro nenhum se prenda a essa tua eterna tenda. Que nome tenhas eterno em teu leito sempiterno.”

Abaixo, o discurso continua, dizendo: "Tendo voltado para a terra fria, livres estão da dor e da alegria" (tradução de Carlos Alberto Nunes). E o que é a morte senão esse findar das dores e aflições da vida? 

Exceto para os que ficam.
Aos que ficam, existe o luto - essa eternidade indizível. 

Mas somos Clarissa Dalloway, dizendo que nós mesmas compraremos as flores, ainda que uma centena de pessoas pudessem fazê-lo em nosso lugar, porque a urgência da vida - o reconhecimento da eternidade silenciosa da morte - nos impele a tal. Mas nem todos podem, e talvez jamais consigam, afastar o espectro da morte de seus pensamentos após terem contemplado sua silhueta diáfana tão de perto. 

Quando a pandemia começou, escrevi sobre O ano do pensamento mágico, livro da Joan Didion. Lá, eu disse: "A rigidez do tempo é só um escape para não enlouquecermos. O tempo da morte é em todo o lugar e ocupa o não-tempo, as lacunas, a espera. Talvez seja isso a que chamamos de eternidade". E essa eternidade parece prolongar-se quando a vida nos surpreende. O arrefecimento da pandemia (não seu final - apenas um arrefecimento, já que o fim social de algo não significa o fim biológico, que ainda vai demorar um tempo) nos fez pensar em reuniões, na possibilidade do reencontro, em tudo o que perdemos e em tudo o que permaneceu. 

A vida é um estado de impermanência; a morte é eterna.

Após anos de pandemia, finalmente meu tio, que morava no Rio de Janeiro, conseguiria viajar para cá, para passarmos o fim de ano juntos, toda a família. Isso foi combinado ainda esta semana. Então veio a morte - e a urgência da vida cessou. Agora o que resta é a eternidade indizível. 

"Não temas o sol ardente nem o inverno enregelado; já descansas sorridente depois de cumprido o fado. [...] Tendo voltado para a terra fria, livre estás da dor e da alegria." Descanse em paz, tio Zé. 




A pintura acima é The maiden's lament, de Horace Vernet (1789-1863), e este texto foi originalmente publicado na newsletter do Querido Clássico, no dia 27 de novembro de 2022. 

Comentários

  1. A morte é uma coisa estranha. A gente custa acreditar que aconteceu, custa entender que essa pessoa não estará mais aqui, custa entender que as coisas são como são...
    Custamos muitas coisas.
    Eu perdi meu pai agora no final de novembro e custei a acreditar de inicio.
    Seu texto em conjunto com os trechos de Mrs Dalloway (ainda preciso ler Virginia Wolf) ficaram maravilhosos.

    Blogger | Pinterest

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Form for the Contact Page